INNERARITY, Daniel. A Filosofia como uma das Belas Artes. Lisboa: Editora Teorema, 1995.
Traduzido do original espanhol por Cristina Rodrigues e Artur Guerra.

A Filosofia como uma das Belas Artes

“Freqüentes vezes ao longo da minha vida me visitava o mesmo sonho, ora sob uma, ora sob outra visão, mas sempre com as mesmas palavras: ‘Sócrates, compõe, pratica a arte das Musas!’ Ora este sonho, tomava-o eu no passado como advertência, um incitamento a prosseguir a minha linha de ação: tal como se estimulam os atletas de corrida (pensava), assim também o sonho me estimula a prosseguir neste mesmo gênero de atividade que pratico, ou seja: a música, visto que a filosofia é a mais alta forma de música — e outra não era, justamente, a minha ocupação”.

PLATÃO, Fédon

FREI LOURENÇO: — Oh, insensato! Escuta-me um instante!

ROMEU: — Oh! Ides falar-me ainda de desterro?

FREI LOURENÇO: — Vou dar-te uma armadura para te livrares dessa palavra. A filosofia, doce leite da adversidade, há de consolar-te, apesar de desterrado.

ROMEU: — Apesar de desterrado? Que se enforque a filosofia! Se essa filosofia não pode criar uma Julieta, mudar de lugar uma cidade, revogar a sentença de um príncipe, de nada me serve, nada vale. Não me faleis mais nisso.

FREI LOURENÇO: — Agora vejo que os loucos não têm ouvidos.

W. SHAKESPEARE, Romeu e Julieta, 3º ato, cena III.

Introdução: Um filósofo no palco

A Filosofia, disse Schopenhauer, começa sempre como a abertura do Don Giovanni: num tom menor. É muito significativo que um filósofo tenha de definir a sua tarefa em termos musicais, isto é, nada conceituais, que um determinado ambiente sonoro reflita melhor do que uma definição estrita o conjunto de implicações que aquilo que ele faz origina. O tom menor é o próprio do que é triste, inseguro, a antecâmara do espanto e da inquietação, do medo perante o pressentimento de que tudo é possível, talvez também o bom. É o ambiente musical do suspense. Filosofia como algo emocionante? Pois sim, sujeita também, então, à decepção. A Filosofia é fundamentalmente uma expectativa; dela se espera muito, às vezes mais do que ela pode dar.

Grande parte das suas declarações de amor à verdade, perante as quais não pode resistir aquilo a que Hegel chamava a essência oculta do universo, são de uma força poética que provoca o entusiasmo ou um leve sorriso. O estilo filosófico nem sempre tem a marca de uma conclusão silogística, às vezes nem sequer um ligeiro tom argumentativo. As suas declarações programáticas são com freqüência uma arenga ao patriotismo filosófico: uma promessa para suster os que hesitam. Mas serão ilícitos em Filosofia os privilégios retóricos de que gozam outras ocupações honradas? Se na Filosofia não houvesse lugar para a paixão e para o desânimo, para o engenho e o ridículo, deveria ceder o seu feliz lugar a qualquer uma dessas ocupações que nunca se enganam, graças ao fato de também não correrem o risco de dizer alguma coisa interessante.

A Filosofia não é um exercício mental objetivo, exterior e abstrato, completamente alheio a quem o realiza, indiferente à paixão existencial que está na sua própria origem. A radicalidade da Filosofia consiste na sua motivação existencial. A Filosofia é tudo menos uma distração inocente. Outras disciplinas do pensamento podem ser feitas nas costas da vida ou influir muito pouco nela, tocando-lhe apenas ao de leve numa posterior aplicação. Um cientista pode comportar-se de acordo com umas normas enquanto exerce a sua profissão e com outras quando vive.

Este dualismo é perfeitamente suportável. Em Filosofia, não. Um filósofo não é só um pensador, é também, e basicamente, um homem real. O seu modo de pensar é inseparável do seu modo de ser. Nietzsche destacava isto com uma força singular, perante qualquer atividade do pensamento que se oriente exclusivamente para a elaboração de um produto intelectual. O produto do filósofo é a sua vida (mais do que as suas obras):

Esta é a sua obra de arte. Toda a obra de arte é principalmente para o artista, na medida em que retorna ao homem”1.

A Filosofia é um modo de viver que surge da existência e vale o que vale para ela. Embora as proposições filosóficas possam ter um aspecto tranqüilo, uma espécie de inquietação existencial esconde-se em todas elas. É a vida do filósofo que as pronuncia. Por trás está sempre a dramática intromissão do falante num acontecimento existencial. Sloterdijk explicou isto com singular plasticidade:

“Quem proclama uma teoria do progresso coloca-se irremediavelmente a si mesmo como participante, portador e ponto de culminação no drama do progresso. Quem mostra uma teoria da decadência faz-se valer a si mesmo como um dos afetados pelo drama da decadência, quer seja como aquele que protesta, se resigna ou agüenta. Quem diagnostica renascimentos ou épocas de mudança põe-se a si mesmo em jogo como parteira, como piloto da mudança ou até como candidato à reencarnação. E quem profetiza a ruína, declara-se como moribundo, como quem ajuda a morrer, como carpideira ou, por fim, como explorador dos restos da cultura que está agonizante”2.

1.

Nachlass, 1873, 29 [205], Kritische Studienausgabe, Colli-Montinari (ed.), Berlim: Walter de Gruyter, 1980, 7, p. 712 (citado a seguir como KSA).

2.

P. Sloterdijk, Der Denker auf der Bühne. Nietzsches Materialismus, Frankfurt: Suhrkamp, 1986, p. 46.

Esta subjetividade da Filosofia não significa desistir da procura da verdade; significa aperceber-se de que a verdade não ocorre senão num contexto existencial. Que a subjetividade compareça inevitavelmente na apresentação de uma teoria é um sinal da sua inevitável relatividade, algo que o relativismo e o dogmatismo desconhecem, ao festejar aquele essa relatividade como algo incorrigível, onde este não vê nada para corrigir.

Ao filósofo cabe-lhe um papel de esclarecimento e orientação no saudável caos da cultura. Orientar significa “marcar um caminho”, nunca aclarar as incertezas ou poupar o esforço de caminhar. Da Filosofia não se podem solucionar os problemas que requerem um tratamento cultural; apenas se podem definir melhor os seus termos. Isto é especialmente importante quando num âmbito determinado da cultura — na Política, no Direito, na Técnica — surge um problema cuja solução requer uma perspectiva mais ampla. O filósofo — sem ser o árbitro que declara concluído o encontro ou o juiz que profere a sentença — é o único voluntário disponível para arriscar a sua já escassa reputação numa situação especulativamente perigosa, da qual é quase impossível sair sem ter feito papel de ridículo ou perecer, e que causa espanto nos que têm um prestígio bem acreditado.

O filósofo não é o presidente de um holding de Ciências Várias S/A, não é um homem para organizar o todo e coroar o edifício científico, mas sim um reparador versátil ou — como diz Odo Marquard, socorrendo-se de uma metáfora cinematográfica — o especialista (stuntman) para o perigoso, o dublê dos verdadeiros atores do drama social, que obviamente não se decide no ambiente monacal das bibliotecas, nem se desenrola num combate entre entes de razão. Os diversos espaços da cultura são autônomos, mas não completamente auto-suficientes. O filósofo é o guardião da interdisciplinaridade. Ali onde as ciências se vêem obrigadas a manter silêncio, quando surge o desconcerto e a dificuldade, a Filosofia assume o risco de dar mais alguma razão. A nossa linguagem coloquial inventou uma expressão em que coincidem o risco cinematográfico e a intrepidez do filósofo: “entrar na dança”. No meio da trepidação e da complexidade da vida atual, a Filosofia — uma atividade mais arriscada e emocionante do que à primeira vista possa parecer — é chamada a ser um guia útil para perplexos.

Uma Filosofia considerada como arte — mais em concreto: como ação retórica, teatral — está em melhores condições que a elucubração monológica para compreender a vida donde ela surge e à qual deve ajudar a clarificar-se. A Filosofia é uma ação humana, demasiado humana, se se quiser. A Filosofia não influi na vida: é um modo de conduzi-la. Uma proposição filosófica — até a de aparência mais neutra — não pode esconder a sua carga valorativa, a sua mais ou menos dissimulada exortação ou censura, ao passo que as ciências não precisam de retórica porque quase não modificam o comportamento. A Filosofia é mais difícil de aceitar, mais perigosa e inquietante. Longe de lhe conferir um ar de inocente entretenimento, entender a Filosofia como arte pressupõe dotá-la duma carga polêmica que é o sinal distintivo de tudo o que tem interesse.

Deste ponto de vista, parece claro que “Filosofia” não é o nome daquilo a que os analíticos chamaram uma espécie natural, mas só o nome duma das gavetas em que está dividida a cultura humanística por razões administrativas e bibliográficas. Penso que a nossa época pede ao filósofo que seja aquilo a que Rorty chamou um intelectual de uso múltiplo, que não tem “problemas especiais” para resolver nem tampouco dispõe de algo assim como que um “método” específico e que “está disposto a opinar sobre quase tudo, na esperança de fazer com que fique ligado a tudo o resto”, e a quem chama “especialista em ver como as coisas se relacionam umas com as outras”3. Isto não significa deixar-se seduzir pelos encantos da retórica pós-filosófica. Parece-me que esta idéia do filósofo como nexologista está presente de diversas formas em toda a tradição filosófica. Os medievais diziam que a inteligência é pôr em relação; legein, para os Gregos, significa prender; como a metáfora, alude a uma conexão entre o que parece heterogêneo. E a primeira vizinhança que é preciso recuperar é a que existe entre Filosofia e Literatura desde que os pré-socráticos tiveram a idéia de substituir o balbuciar perante a presença do ser por umas rudes palavras.

3.

Consequences of Pragmatism, Grighton Harvester Press, 1982, p. 39.

Não se pode — ou não deveria — traçar uma linha de separação estrita entre a Filosofia e a Literatura. Se esta forma de ver tem atualmente uma certa carga polêmica, é devido à conjuntura em que nos encontramos. A racionalidade tem sido pensada, hoje em dia, segundo o modelo da Ciência positiva. Esta restrição é um empobrecimento face ao qual não se deveria reagir despedindo-se a razão, mas sim flexibilizando o conceito de razão. Proponho que se leve a sério a idéia de que, mais do que qualquer disciplina metódica, a racionalidade mergulha as suas raízes naquilo a que os fenomenólogos chamam o mundo da vida; em inclinações como o gosto, o encontro, a permanência, o aplauso, o esquecimento, a desaprovação, a queixa e o reconhecimento há mais indicações de valor para o saber e o agir que em todas os preceitos metodológicos. A arte da vida é essa reflexividade comum que a Filosofia prolonga e aprofunda, precisamente o contrário do fustigar permanente das certezas e dos hábitos fundamentais.

A racionalidade estética — a experiência estética que está presente nas nossas apreciações de gosto — não é uma forma paralela da racionalidade; é antes a urdidura de todas elas, confirmando-as ou reprovando-as. A fruição estética é uma experiência que nos garante consonância ou inadequação com o mundo, pelo que tem uma função reflexiva que não está ao. alcance de um grande esforço científico nem pode estabelecer-se como precipitada moralização. Prescindir da experiência estética seria renunciar a um meio de conhecimento insubstituível, o luxo a que não pode dar-se qualquer um, e menos ainda numa época de escassas certezas. A experiência estética não é o lugar em que podem estacionar os problemas filosoficamente irresolutos, desde que a dúvida na racionalidade se converteu num lugar demasiado comum. A estética não é um substituto da racionalidade, mas antes a sua expansão e alargamento, uma atenção que amplia os seus horizontes e tempera a sua receptividade.

A racionalidade com que operam as ciências — ou a Filosofia realizada segundo o seu modelo — não é uma atitude original e evidente, mas sim o resultado de uma determinada elaboração de experiências anteriores. Dito de outra forma: antes que as ciências se ponham em marcha, antes também que haja Filosofia, o mundo não é estúpido e irracional; nas formações históricas da vida humana (alimentação, roupa, linguagem, hábitos, sinais, organizações...) já há racionalidade e sentido, está presente uma instalação no mundo elaborada segundo parâmetros de gosto e inteligência. A racionalidade que se foi sedimentando no mundo da vida precede os processos lógicos sofisticados e sustém-nos. Não há processos para deduzir formas de vida. É uma impossibilidade que já foi apontada por Aristóteles na sua crítica a Platão, e que percorre toda a História da Filosofia. Todas as promessas utópicas que se seguiriam aos homens terem lido os livros adequados, não é proclamarem algo desejável mas impossível; é ninguém minimamente sensato dever desejá-lo. Não é conveniente exigir-se em todos os âmbitos da cultura o mesmo tipo de racionalidade; o risco que correríamos seria cometer também todos o mesmo tipo de parvoíces, sem se neutralizarem umas às outras, como felizmente acontece em toda a sociedade plural bem constituída.

O mundo moderno não torna desnecessárias a Filosofia e as ciências do espírito. É mais ao contrário: precisa mais delas que qualquer outra cultura. É muito significativo que um inimigo tão declarado destes saberes como Comte, ao passar a sua certidão de óbito e declarar a apoteose das ciências positivas se visse obrigado a justificar esta ultrapassagem contando uma história — a dos três estádios da evolução da humanidade —, isto é: tivesse de justificar narrativamente o falecimento de toda a narrativa. Os homens precisam de histórias; se não, morreriam de atrofia narrativa. A modernização impulsionada pelas ciências experimentais e suas aplicações técnicas cria carências no mundo da vida — de sentido, identidade, orientação... — para cuja compensação colaboram as ciências do espírito. Estas não são em absoluto hostis à modernização, antes a tornam possível. A atualidade duma filosofia capaz de constituir-se como distribuidora de sentidos narrativos reforça-se com o processo de modernização.

Uma filosofia assim é cada vez mais inevitável. Se existir nas humanidades alguma crise não será por se terem reduzido as suas prestações, mas por se verem perante mais procura que a que elas podem satisfazer. A força duma filosofia bem relacionada com os restantes saberes humanísticos, duma filosofia entendida como arte de prender e remeter, estabelecer vizinhanças e tecer vetores de sentido, consiste em ampliar o espaço que se situa entre a excessiva abstração acadêmica e a imediatez irreflexiva. Defende um âmbito face à imediação rudimentar e contra a idiotice especializada que surge da distância excessiva. Essa atenção comedida, o equilíbrio entre ingenuidade. e estilo, a força polêmica aliada à flexibilidade da veia humorística, a acomodação num âmbito de relação intersubjetiva mediada por uma cultura concreta, são o que permitem perceber a Filosofia como arte. A primeira resposta que me ocorre a quem objetar que isto não é Filosofia poder-se-ia formar da seguinte forma: tanto me faz. A segunda: que não se possa demonstrar é uma prova do que se disse. Ainda disponho de outra: se Thomas de Quincey pensou que o assassínio podia ser considerado como uma das Belas Artes, mais algum mérito tem a Filosofia para aspirar a uma consideração semelhante.

I. A RAZÃO INGÊNUA

1. A Filosofia como vulnerabilidade

Não é preciso convidar ninguém para a sua própria casa, embora também não seja de mais ajudá-lo a descobrir recantos que lhe são, apesar de habituais, inéditos. Escrevo a pensar também nos que não são filósofos nem desejam sê-lo, e até nos que se irritam perante a impertinência de gente tão chata, sempre presente em qualquer reunião para a qual não foi convidada. Talvez seja uma perda de tempo deter-se a pedir desculpa da sua própria presença, mas nem todas as perdas de tempo são do mesmo calibre; há algumas que valem a pena. E dado que os filósofos não podem justificar-se pela sua produtividade, são obrigados a defender o ócio de que gozam mostrando a benéfica incomodidade da reflexão filosófica. Quase todas as justificações de uma profissão recorrem à indicação duma nova doença que só eles são capazes de curar. Qualquer apologia tem de criar a sua correspondente patologia. No caso da Filosofia esta justificação é um pouco mais difícil porque ao diagnóstico dos males nem sempre se segue uma receita convincente. Só me cabe esperar que a declaração de incompetência farmacológica encontre um auditório indulgente e consiga convencer alguém de que esbarrar nos limites é uma experiência que enriquece uma sociedade orgulhosa da sua plena competência.

Poderia parecer um eufemismo propagandístico falar da Filosofia como uma aventura e prometer a todos os que quiserem ir até ela riscos, estremecimentos estéticos e emoções, escaramuças e assaltos à mão armada, e até voltar a casa com alguma ferida de guerra. A nossa época não parece especialmente propícia para a reflexão; estamos sob uma forte pressão econômica — “é preciso ser competitivo”, diz se —, e a Filosofia parece mais inclinada para a colaboração gratuita e para a ociosa improdutividade. Todos nós estamos submetidos à necessidade de conseguirmos um emprego, e a procura de um lugar de trabalho deixa para um segundo plano a procura da verdade. O pensamento sem regras nem estratégias, que não calcula nem traz lucros, encontra-se perdido no mercado. Foge espavorido perante qualquer máquina, planificação ou exigência de rendimentos. No trem de alta velocidade da nossa civilização, a perplexidade do filósofo é semelhante à do aldeão que se assustasse e puxasse constantemente o freio de emergência, sem ser capaz, depois, de dar uma explicação convincente ao condutor. Outros profissionais movem-se com imperturbável competência no mundo real e sabem fazer perfeitamente a declaração dos rendimentos, arranjar uma tomada ou preparar uma viagem. Face a tão invejável destreza está a insegurança dos filósofos, que parecem andar sempre à procura da sua profissão perdida, como se um polícia da unidade de rendimentos ou o fiscal contra a vagabundagem lhe pudessem exigir a todo o momento um justificativo da sua improdutividade.

Terá então algum sentido qualificar como aventura a aparente passividade filosófica? A Filosofia é atualmente um assunto de funcionários e de mais um departamento nesta sociedade da divisão do trabalho. Mas tem algo de nômade, e aspira secretamente a sabotar a departamentalização do saber, a meter-se onde não é chamada e a pôr em questão a propriedade privada dos meios de produção cultural. A Filosofia não nega a especialização, mas também não se resigna sem mais nem menos a ela. Talvez já não disponha — como pretendeu outrora, orgulhosa — de um conceito acabado e completo do mundo , de uma pedra filosofal que reúna plenamente o que está disperso, mas tem, isso sim, “uma idéia de que algo se deve manter desse conceito”4. Isto pode parecer intempestivo, numa altura em que a Universidade parece ter deixado de ser uma Universitas para se converter numa mera soma de faculdades especializadas. A Filosofia é um elemento perturbador de agitação no campus da pacífica indiferença; sabota assim que pode a coexistência dos especialistas que se ignoram mutuamente; provoca o confronto onde capta uma excessiva compartimentalização. Na tensa relação por ela própria introduzida, nesta “luta das faculdades” tanto no sentido kantiano como no meramente administrativo, a Filosofia encontra o seu elemento vital, o seu terreno propício como auto-reflexão das ciências dispersas e da sociedade cindida.

4.

Hans Blumenberg, Arbeit am Mythos, Frankfurt: Suhrkamp, 1979, p. 193

Uma das rupturas que a Filosofia não se resigna a contemplar como definitiva é aquela segundo a qual o interessante é irreflexivo e o aborrecido é racional; que a paixão e o prazer estão fora da razão, ao passo que o exercício da inteligência é uma disciplina insuportável. Há já mais de um século que Hegel se rebelou contra o dualismo entre aquilo a que ele chamava “interesses sem cientificidade e cientificidade sem interesses”, a que Schopenhauer designou como dualismo entre a Staatsphilosophie (a Filosofia de Estado, burocrática, de gíria e de seita, isolada da vida e incontaminada de tudo o que realmente nos preocupa) e a Spassphilosophie (o pensamento que paga a sua fruição com o preço de se entregar atado de pés e mãos à incoerência). A Filosofia pode fazê-lo com maior ou menor sorte, mas aspira a reunir fruição e seriedade, rigor e compreensibilidade, vida e reflexão, fundamento e variação. Não se resigna a ter de escolher entre a verdade abstrata e a vida irresponsável.

Mas os maus tempos são sempre bons tempos para a Filosofia, à qual se pode consentir uma única vaidade: a de ser uma espécie de espectadora de naufrágios ou sobrevivente de catástrofes. O filósofo é um personagem que sabe esperar e, sobretudo, sabe esperar o cadáver do seu inimigo, o homem hábil, prático, satisfeito e seguro de si próprio. A Filosofia não é mais astuta que os triunfadores oficiais, mas já tem velhice suficiente para saber que o êxito é a antecâmara de um fracasso, que a segurança não é tão duradoura como promete e que, mais cedo ou mais tarde, o homem terá de enfrentar algum tipo de catástrofe, seja sob a forma de perplexidade, de desorientação ou de perda de sentido. Este é o momento que a Filosofia esperava secretamente para se vingar do sarcasmo com que era desprezada pelos traficantes do êxito. As perguntas filosóficas surgem, dizia Heidegger, no meio de um grande desespero, quando “todo o peso quer desaparecer das coisas e todo o sentido se obscurece”5.

5.

Einführung in die Metaphysik, Frankfurt: Klostermann, 1983, p. 1.

A pergunta filosófica elementar — por que o ser e não o nada? — não é tão abstrata como possa parecer. Muitas vezes fazemos perguntas deste tipo: sempre que nos encontramos com alguma coisa que poderia ou deveria ser de outra forma, quando protestamos, quando descobrimos um erro ou quando nos arrependemos. A Filosofia surge da impotência e do desconcerto, da surpresa e do espanto que desperta em nós a experiência de que o âmbito do possível é mais vasto que o da necessidade.

A Filosofia é a inquietação posta em prática. Porque não a Justiça, a compaixão, a transparência, a simplicidade em vez dos seus contrários? Quem é capaz duma pergunta assim rompeu com a incômoda obrigação de dizer a tudo que sim, de ser advogado do existente, um pequeno conservador. O espanto também pode ser indignação. É precisamente então que se dá o salto da quotidianidade para a interrogação filosófica. A Filosofia nasce como experiência da dificuldade, contra a “teimosa regularidade” (Heidegger) das coisas. Não toma mais leves ou fáceis as coisas deste mundo, mas sim mais pesadas ou difíceis.

Kierkegaard diz que decidiu fazer Filosofia quando um dia se apercebeu que toda a gente se dedicava a fazer com que as coisas fossem mais fáceis e teve a idéia de se entregar a procurar precisamente o contrário. A Filosofia não é uma descarga; prefere o peso. Por isso, um convite à Filosofia cumpre com a paradoxal tarefa de facilitar o estudo do seu objeto tornando-o mais denso.

Quem não tiver passado por esta vertigem perante a leveza do real, quem não tiver sentido indignação perante a banalidade ou não tiver sofrido algum tipo de guerra sem se conformar com ela, esse não perceberá a supérflua necessidade da Filosofia.

Há um tipo de filosofia para a qual não me atreveria a convidar ninguém. Refiro-me à Filosofia como astúcia intelectual e como destruição da ingenuidade. Vou ilustrar este modo de fazer Filosofia recorrendo à ópera de Mozart Cosi fan Tutte. O enredo desta história é bem conhecido. Dois jovens são convencidos por Don Alfonso — modelo de filósofo astuto, calculador e maduro — para submeterem as suas noivas a uma experiência singular.

Trata-se de simular uma viagem militar de longa duração para, depois da encenação duma despedida em que conseguem das suas prometidas uma séria declaração de espera fiel, voltarem disfarçados com o fim de cada um seduzir a noiva do outro. No libreto que Lorenzo da Ponte escreveu para Mozart, Don Alfonso expressa perfeitamente o espírito iluminista, a pretensão de pôr tudo à prova e de fazer experiências até nos campos que para um olhar ingênuo são mais próprios para a desconfiança que para a racionalização. Don Alfonso justifica este imperialismo filosófico com uma frase de requinte cínico: in ogni cosa ci vuol filosofia (em tudo é preciso filosofia). Mas uma filosofia assim entendida destrói os espaços onde — como no amor — não é lícita a suspeita e a desconfiança. Tentar garantir a fidelidade de uma vontade livre é incompatível com o amor a um ser livre.

Equivale a pensar que a posse de uma mulher é como a propriedade privada dos meios de produção. No enfado de Ferrando e Guglielmo, com verificarem o êxito do sua equívoca experiência, há um ressaibo de amargura, como que uma verificação de terem brincado com coisas com que se não deve brincar e que a sua astúcia se transformou em fracasso, do qual eles são tão responsáveis como elas. A conclusão de Don Alfonso é própria do seu espírito descrente e não agradará muito às feministas: natura non potea fare l'eccezione, il privilegio di creare due donne d'altra pasta. Aceitar o convite do astuto filósofo é admitir o preconceito das regularidades implacáveis que destroem os espaços da liberdade pessoal. Don Alfonso é um mestre do cálculo, mas um mau filósofo, porque não faz senão confirmar o que já sabia.

Quem apenas procura confirmações toma-se incapaz para as descobertas.

A Filosofia só é competente para uma coisa: para reconhecer a sua própria incompetência (Odo Marquard). A questão crucial, na hora de justificar a Filosofia, parece-me por isso que poderia ser formulada da seguinte forma: será importante que haja na sociedade quem recorde de vez em quando os limites da nossa competência? Um filósofo assim entendido em nada seria parecido com um funcionário da Humanidade, com um encanador da História ou com um mecânico do Grande Curso do Mundo, mas sim alguém que espicaça a consciência satisfeita, que de muitas e mui diversas formas se disfarça na nossa civilização. A aventura filosófica é uma aposta no risco e na vulnerabilidade.

Das muitas definições que se podem dar a este velho oficio, a que mais me agrada é: Filosofia como vulnerabilidade. Porque a Filosofia é mais um modo de atender que de entender, segundo uma feliz expressão de Rubert de Ventós. Traços próprios desta vulnerabilidade habitual seriam, entre outros, os seguintes: ser-se consciente que é mais interessante o que nos surpreende que aquilo que nos dá razão; fazer menos barulho e cultivar o silêncio atento; demorar as respostas e evitar sobretudo a precipitação; ter flexibilidade mental e praticar essa ginástica do espírito que consiste em ouvir; desconfiar da segurança ostentosa; não sentir-se incomodado perante perguntas a que não se sabe responder mas que também não pode rejeitar; aprender a tirar proveito do próprio desconcerto; fugir do enquistamento nas suas diversas formas: intelectual, moral ou política; estar à vontade na inquietação, naquela que Schopenhauer considerou como sendo o que mantém em movimento o perpétuo relógio da Filosofia; deixar-se invadir por uma incorrigível curiosidade; crescer em capacidade de admiração proporcionalmente à estranheza do admirado; saber que a antítese mais rotunda do filósofo é o vendedor. Em suma: permanecer sempre vulnerável perante a realidade.

Parece-me que esta forma de entender a Filosofia recolhe o que foi de fato o motor das suas melhores expressões (nas quais se incluiriam, por conseguinte, também aquelas em que se misturam grandes clarividências com fracassos estrepitosos). É uma atividade que só está ao alcance de quem tem gosto — de certa forma um pouco masoquista, reconheço — pela insegurança e que ao mesmo tempo é capaz de obter algum proveito do risco da perplexidade. Quando se faz Filosofia a desproteção é quase absoluta; uma pessoa vai apenas com o que tem vestido e com menos ainda, se fosse possível. “O homem — dizia Kant num curioso texto acerca dos terremotos — não nasceu para erguer refúgios perpétuos no palco da vaidade”6.

6.

Geschichte und Naturbeschreibung der merkwürdigsten Vorfälle des Erdbebens, welches an dem Elide des 1755sten Jahres einen grossen Theil der Erde erschüttert hat, Edição da Academia, I, p. 460.

A metáfora da catástrofe serviu a Kant para estimular o nomadismo e a emigração, para desconfiar do que tem aparência consistente. Uma metáfora que é também um convite à aventura filosófica. Fazer Filosofia é subir a um palco móvel e escorregadio, no qual o mais provável é parecer ridículo, aventurar-se no “vasto e tormentoso oceano” da especulação, onde nada está garantido e é sempre possível o fracasso. Para Kant, a tarefa primordial da Filosofia não consiste em dar respostas positivas às perguntas que o homem coloca acerca do mundo, mas sim em pôr à prova as respostas que se lhe oferecem (Nietzsche apontava para algo semelhante quando dizia que o que ele gostava de fazer com os caminhos não era perguntar por eles, mas sim caminhá-los, verificar se na verdade conduziam aonde prometiam). A Filosofia, longe de ser uma cômoda fuga para o refúgio da abstração, é uma ofensiva contra os conceitos meramente pensados. O seu trabalho começa precisamente onde a razão se mostra satisfeita, se instala na comodidade, mostra orgulhosa os seus êxitos e — utilizando uma gráfica expressão kantiana — “dá à luz a partir de si mesma”, fechando-se ao confronto com o real, procurando os dados que confirmam as suas idéias (o que é, diga se de passagem, terrivelmente fácil), em vez de correr o risco de fracassar num rotundo desmentido feito pela verdadeira realidade.

2. A Filosofia como cavilação

A fala coloquial é um sedimento de verdades que não são propriedade de ninguém. Por isso são verdades e por isso são o melhor depósito para se fazer a caracterologia de um tipo humano. Vale mais aceitar a sua oferta que deslizar por uma corrente de deduções próprias, embora se trate de caracterizar uma espécie tão pouco dada a aceitar ofertas como a dos filósofos. A tão desprezada massa sabe muito bem o que é um filósofo. Na democracia da fala, encarar as coisas com filosofia passa a ser uma expressão de tranqüilidade, um gasto generoso de tempo, o luxo de adiar a decisão que a outros urge.

Embora ocasionalmente se disfarce de executivo, o filósofo não engana ninguém com a sua inconfundível lentidão. Alguma coisa terão visto as pessoas nestes últimos dois mil e quinhentos anos para lhe atribuírem esta peculiar habilidade em que consiste a sua falta de habilidade. Penso que, pelo menos nisto, o povo não se engana. Mas seria melhor que se entendesse a demora como uma propriedade geral da condição humana, que os filósofos desenvolvem de um modo especial — outras profissões muito honradas acarretam também as suas deformações — sem qualquer exclusividade. Toda a gente já limpou alguma coisa, apagou fogo ou curou uma ferida, sem por isso ser varredor, bombeiro ou médico. Há quem prefira sublinhar as excentricidades, talvez pensando que a ostentação da sua falta de jeito o livra de algumas obrigações; eu prefiro destacar as continuidades que existem entre o exercício do bom senso, o sentido estético e a profissão filosófica.

Em todo o ser vivo há como que uma tendência a responder sem hesitação às perguntas que se lhe colocam. O esquema estímulo-resposta não é um campo de reflexão mas — provavelmente por isso — é uma condição para a sobrevivência. Grande parte do comportamento humano corresponde a esse imediatismo. Mas há qualquer coisa nele que se furta aos imperativos da instantaneidade.

O homem é o ser que vacila. Não se deveria renunciar a nenhum dos matizes apresentados pela vacilação em relação a um certo jogo com o tempo: o homem é o ser que se entretém e entretém, que cavila. É uma característica especificamente humana aquilo a que poderíamos chamar — embora na nossa língua, atualmente, não devamos — pensatividade, termo que existe noutras línguas: Nachdenklichkeit, pensiveness, pensosità. A cavilação poder-se-ia denominar reflexividade, se despojássemos esta palavra da sua conotação de concentração em si mesmo e falta de atenção ao meio circundante.

A cavilação humana que a Filosofia se encarrega de cultivar — de hipertrofiar, por vezes — é precisamente o contrário do recuo improdutivo: é uma paragem do tempo por excesso de atenção, uma ampliação do horizonte considerado, a curiosidade como instituição. Esta propriedade seria uma demora fatal que a vida não perdoaria se as suas desvantagens não fossem equilibradas pela aquisição de algo positivo: o crescimento dessa cultura da relação com o mundo a que chamamos experiência. Aquilo que nós homens perdemos ao defrontarmo-nos com uma realidade que não nos é inequívoca, que é mais complexa e confusa que a filtrada pela percepção animal, ganhamos em termos de variedade. Da falta de clareza teórica e imperativos pragmáticos surge a virtude da pluralidade humana. A cultura é uma renúncia às soluções rápidas e rudimentares, que deixam de ser os caminhos mais curtos. Mais ainda: a brevidade pode ser um indício também aqui a fala coloquial não engana de inteligência escassa e a rapidez indica com freqüência educação mínima.

A vida exige funcionalidade, mas é o fato de a utilidade, no âmbito do humano, ser difícil de ponderar que permitiu o desenvolvimento de atividades libertas do imperativo da utilidade, isto é, a cultura. Até nas suas expressões mais primitivas, no adorno mais austero e no ornamento menos sofisticado, a cultura contém um gesto de lucro acima da mera utilidade, de economia suspensa, de rentabilidade interrompida, de soberana liberdade. A Arte e a Filosofia surgem duma situação idêntica: a partir duma vacilação que tem algo de desconcerto, mas que sabe aproveitar esse adiamento. A dilação do urgente é a condição de possibilidade das culturas. A vida cultivada é uma vida prorrogada, uma demora, é o que se faz enquanto ficou momentaneamente suspensa a urgência geral da sobrevivência.

Há uma sensação de alívio, uma vivência de liberdade, na demora que uma digressão pressupõe. A divagação pode levar a uma perspectiva inédita ou simplesmente proporcionar o tempo necessário para que o problema seja mais bem formulado, pois muitas vezes esta é a melhor solução que nos é acessível. O excurso é uma liberdade que o pensamento regulamentado não se pode permitir. Um incômodo tipicamente filosófico é o de Sócrates, que se zanga quando o seu interlocutor lhe pergunta quanto tempo lhes resta. Wittgenstein dizia que a saudação dos filósofos deveria ser: lass dir Zeit!, leva o tempo que quiseres, não tenhas pressa. É um privilégio, mas também o reconhecimento de que tudo o que os filósofos dizem o dizem demasiado cedo.

O que é que se ganha sabendo que nada se sabe? Ou empurrando ironicamente para a perplexidade aqueles que se julgam na posse do saber? Pois que o pensamento não se esqueça da cavilação que é o seu solo e a sua origem. Graças a esta remissão, a Filosofia superou até agora todas as dúvidas acerca da legitimação da sua existência, para espanto dos seus coveiros. A Filosofia não é a mesma coisa que essa cavilação, mas procede dela e está ao seu serviço. É esta a utilidade do homem pensativo, a utilidade geral da demora, o alívio do adiamento; sem estas exonerações, há muito tempo que a Filosofia teria desaparecido.

Gostaria de pôr dois exemplos de cavilação útil para a vida, contra a idéia de que não pensar em nada é o melhor remédio contra o desespero e a morte. O primeiro é uma fábula de Esopo que diz assim:

Uma vez o velho foi cortar lenha, carregou-a e fez um longo trajeto. O caminho esgotava‑o. Deitou fora a carga e chamou a morte. Esta apareceu imediatamente e perguntou por que o tinha chamado. O velho respondeu: “Para me pores outra vez a carga em cima.”

Um homem pragmático e decidido já estaria a pensar que conseqüências haveria de tirar da fábula moralizante, mas penso que não se conseguiria nada extraindo uma doutrina desta história, traduzindo a numa cômoda frase transportável. A conclusão é que não há que concluir, mas pospor. A própria demora é ganhar sentido. A fábula renuncia a uma conclusão e proporciona-nos assim um espaço de jogo para a cavilação. A utilidade da demora para a vida é uma constante humana, lucidamente observada pelo escritor grego e sem dúvida acrescentada no mundo moderno.

A segunda história é mais próxima e recria o contexto cultural dos começos do século XIX na figura de um homem fundamentalmente lento, John Franklin, pesquisador e navegador que existiu realmente (1786-1847). Trata-se do romance de Sten Nadolny intitulado A Descoberta da Lentidão7. Esta descoberta significa para o audaz marinheiro desenvolver uma estratégia de resistência contra a implacável corrosão da vida através da velocidade e a pressa angustiosa do mundo. A sociedade baseia-se na velocidade, no imperativo e na necessidade de se ser rápido, e deste modo exerce um poder aniquilador. Todo o vínculo social, do mais simples até à estrutura mais complexa, é veloz e destruidor.

Quando era pequeno, os colegas de John censuravam a sua ineficácia e a sua lentidão nas brincadeiras.

7.

Die Entdeckung der Langsamkeit, Munique: Piper, 1990 (trad. brasileira: A descoberta da lentidão, São Paulo: Rocco, 1993).

Os barcos de guerra e os seus canhões trazem morte e destruição graças à sua agilidade nos assaltos. As ruas de Londres transformam-se em labirintos infernais, nos quais circula permanentemente um fluxo selvagem de homens e carros. O poder político — neste caso, a Inglaterra vitoriana — invade o mundo com o seu insaciável impulso de conquistar, ocupar e possuir. Declara a guerra a outros Estados, aniquila o que não tem valor, como, por exemplo, os nativos da Tasmânia. A vara do suboficial e do capataz parece ter-se convertido no símbolo de todo um mundo. Assanha-se contra aqueles que reagem lentamente às ordens ou estão esgotados, para os conduzir assim com a rapidez exigida. Sabiam muito bem o que faziam aqueles trabalhadores ingleses que apedrejavam o relógio que ficava sobre a porta de entrada da fábrica — e não as máquinas onde trabalhavam —, dirigindo assim a sua ira contra o odioso símbolo da medição do tempo, com o qual se queria controlar o seu rendimento acelerado.

Franklin é um estrategista que organiza a resistência contra a velocidade e contra a sociedade que nela se baseia. Transforma a sua lentidão perceptiva num filtro de reflexão, de tal forma que se apodera realmente das coisas que entram no seu campo de atenção. Consegue fazer da sua falta de jeito um instrumento que lhe permite penetrar no essencial da realidade.

Introduzido no curso violento de uns acontecimentos vertiginosos, caóticos e incompreensíveis, contempla-os com uma espécie de lupa temporal. A sua premência, na medida em que lhe impede uma rápida visão de conjunto, protege-o igualmente das ações precipitadas dos erros que se seguem a conclusões superficiais e em cascata, ao mesmo tempo que dá ao seu pensamento uma extraordinária capacidade de sondar o pormenor com minuciosa exatidão. Do mesmo modo, apercebe-se daqueles movimentos — tropismos — que por causa da sua lentidão os outros quase em notam. Graças a esta capacidade, John Franklin sabe aproveitar os caminhos de fuga decisivos, até os mais estreitos, que o salvam, a ele e aos seus companheiros, da catástrofe nos combates, do naufrágio, de perder-se no gelo. Estamos perante uma recriação da fábula da demora que serve para a sobrevivência.

“Como Franklin era muito lento, nunca perdia o tempo.” Tinha aprendido a viver com a sua aparente inépcia, até ser menos estúpido que os outros. Nem mesmo a morte à espreita, iminente, fazia com que ele interrompesse ou acelerasse uma meditação. Com freqüência conseguia escapar à morte, pois “era mais lento do que ela”. A lentidão é outra forma de escapar à morte. De que morte se trata neste caso? Daquele tipo particular de desespero que consiste em acelerar o tempo em que se sobrevive para que não surja a pergunta incômoda sobre se realmente se vive, isto é, a idiotice, o aborrecimento, a desorientação, o orgulho, a invulnerabilidade. A dilação solicitada pelo velho grego e a lentidão reflexiva do moderno aventureiro são igualmente condição para que a reflexão se ponha ao serviço da vida, impedindo o desespero não razoável ou a fuga precipitada para a catástrofe.

O que Nadolny conseguiu mostrar foi que a lentidão e a velocidade têm o seu lugar complementar. O protagonista recorda a proposta que um dia lhe fez um médico amigo, ao ver “a fatal aceleração da nossa época”: medir com uns aparelhos especiais a velocidade de cada indivíduo e então decidir para que estaria especialmente dotado cada um. Porque há “profissões da panorâmica”, como as do cocheiro ou do parlamentar, e “profissões do pormenor”, como as do artesão, do médico ou do pintor. Os primeiros podem entender-se bem com a aceleração, mas os segundos têm alguma dificuldade em conseguir um lugar para eles. O que é que estes podem oferecer numa cultura da pressa? Basicamente tudo aquilo para o qual se exige cultivar a atenção.

Seria uma loucura fazer da cavilação a única relação com a realidade. A cavilação total é tão pouco conveniente como a rapidez obrigatória. O mundo sanciona ambos os excessos e tende a equilibrá-los. Parece acontecer na realidade algo assim como que uma lei da conservação da ingenuidade. A capacidade humana de reflexão e de ceticismo é limitada, e quanto mais se concentra numa das frentes do pensamento mais facilmente prevalece a ingenuidade nos outros. Esta lei da ingenuidade constante tem a sua expressão laboral no fato de uns terem de ser eficazes para outras cavilações, e uma pessoa cavila a tempo parcial porque aceita margens de automatismo. A vida só é possível em condições de alguma desatenção. E as instituições que tornam possível essa despreocupação são precisamente as que gerem essa contingência que nós somos e que nos rodeia, destacando âmbitos de relevância dos fundos de indiferença.

Hölderlin descobriu o luxo da reflexão e desvendou também as suas condições de possibilidade.

“O homem que não tiver sentido em si pelo menos uma vez na vida a beleza em toda a sua plenitude, nunca chegará sequer a ser um filósofo cético (...) Porque, acredita, o cético só vê contradição e ausência em tudo o que se pensa porque conhece a harmonia da beleza sem manchas, que nunca poderá ser pensada. Se desdenha o pão duro que a razão humana lhe dá com boa intenção é só porque em segredo se sacia na mesa dos deuses”8.

8.

F. Hölderlin, Sämtliche Werke. Grosse Stuttgarter Ausgabe, F. Beissner (ed.), Stutgard: Kohlhammer, 1928, III, p. 19.

Esta mesa dos deuses tem aqui um duplo sentido. Em primeiro lugar, que a Filosofia não é a única relação com a realidade, nem sequer para o filósofo, pois há outras fontes de experiência, graças às quais se pode suportar o ceticismo (não é em vão que Hölderlin o exprime em termos gastronômicos, que devem ser tomados literalmente e não em sentido metafórico). E em segundo lugar que, além de sobreviver, o filósofo tem de conviver, saciar-se noutras mesas, talvez menos supremas mas mais bem abastecidas.

Toda a reflexão — também a que espera concluir com alguma descoberta que lhe permita apagar do mapa o mundo em que vive (e do qual vive) — se alimenta dos benefícios da civilização. Um deles é a felicidade da diferenciação moderna de esferas. Deve-se agradecer que a mudança de governo não altere o horário das aulas, nem o humor da polícia altere a quantia da multa.

Existe Filosofia porque ninguém conseguiu por agora — apesar de não ter havido falta de voluntários — impor em todas as áreas da vida a mesma exigência de resultados. A Filosofia refugia-se nesses espaços que não foram atingidos pela planificação total. Por isso só existe Filosofia numa sociedade moderna, no sentido mais amplo da modernidade: na divisão do trabalho, quando existem a ágora e o mercado, a bolsa a vida, a vacilação e o êxito, a balança de pagamentos e a balança de preguiçosos, o índice de preços e o índice de néscios9, o militar e o poeta.

9.

Cf. Fernando Múgica (que é o autor das expressões anteriores, e não por se referirem a ele).

O filósofo não é hostil à modernização, pois vive graças a ela. A crescente velocidade de mudança, própria da sociedade moderna, é compensada por um crescimento da estabilidade dos seus sistemas particulares autônomos. Pode-se suportar uma grande quantidade de inseguranças — toda a cavilação é uma crise de orientação — se o salário e o jornal chegarem com a devida regularidade, o correio e os transportes funcionarem, a jurisdição for calculável e não forem postos em dúvida todos os costumes que regem nestes sistemas. Um costume não é outra coisa senão um modo de agir cuja caducidade foi adiada. A descoberta filosófica de que tudo flui — em que palpita uma certa amargura perante a fugacidade do real — é suportável pela feliz experiência de se saber que também fluem a água corrente e a eletricidade. A melancolia filosófica deve a sua sobrevivência à eficácia despreocupada do canalizador e do eletricista; a cavilação é uma filha mimada da habilidade.

Sem pretensões de exclusividade, a Filosofia responde à urgência da reflexividade sem urgência, nuns momentos em que a solução dos problemas é vista como sendo a convicção nada ingênua — cuidadosamente forjada à base de pressas e esquecimentos — de que não há problemas; quando abundam soluções demasiado fáceis para problemas quase não formulados; quando a facilidade se converteu em indecência e a rapidez em aliada do rudimentar.

A arte da cavilação improdutiva é a ocupação do filósofo, mas isto não significa falta de atenção, mas precisamente o contrário. É também oportuno insistir nisto quando, através duma série de medidas analgésico-acadêmicas, se criou tanta distância face aos problemas candentes do nosso tempo que os filósofos se esquecem freqüentemente dos problemas que lhes deveriam dizer respeito. Sem distância não há comportamento inteligente, mas há uma distância. desmedida que entontece o filósofo e o leva a dedicar-se aos seus próprios problemas, e que ninguém mais tem.

A cavilação, a reflexividade, não é outra coisa senão adiamento, dilação face aos resultados triviais que o pensamento nos dá quando o interrogamos sobre a vida e a morte, o sentido e o sem-sentido, o ser e o nada. Sabia muito bem o que estava a dizer aquele jovem professor chamado Higinio Marín que, depois de ter ouvido um rotundo sim à pergunta sobre se entendiam o que ele acaba de explicar, replicava: “bem... realmente... as coisas são um pouco mais complexas”. Por isso parece-me desculpável a tendência do filósofo a deixar sempre um rasto enigmático naquilo que diz, que é como se fosse a sua assinatura, uma defesa face ao medo de que ser compreendido signifique ser trivializado.

Qual poderia ser então o objetivo da Filosofia? Pouco mais, e nada menos, que conservar e renovar essa reflexividade inscrita no nosso mundo vital. Por isso penso que a Filosofia não pode estar vinculada ao cumprimento de determinadas expectativas sobre o seu rendimento. A sua obrigação de manutenção da reflexividade seria destruída se se limitasse o seu direito a perguntar, quer seja violentando as respostas quer tentando decidir de antemão que perguntas lhe são pertinentes. A Filosofia vela por algo que é uma conquista de toda a cultura, protege-o e o faz valer: a inconveniência em reprimir as suas necessidades e problemas elementares declarando-os ultrapassados. Cultura é também, e sobretudo, respeito pelas perguntas às quais não podemos responder, que nos fazem cavilar e nos deixam na cavilação. E ficar pensando é uma forma de mostrar que nem tudo é evidente ou superficial.

3. A Filosofia como arte e experiência da vida

Faz parte dos tópicos da profissão esperar-se do filósofo uma atitude de desconfiança por princípio, uma dúvida ou suspeita genérica em relação à existência do mundo exterior e da realidade. Enquanto o homem vulgar trava a sua batalha contra a dureza do mundo real, o ocioso pensador namora a mais diversas entidades e bate-se contra monstros vaporosos num mundo aonde não chegam os rotundos desmentidos da realidade vulgar. Ninguém saberia dizer com toda a certeza quem concedeu a esta personagem o privilégio de prescindir olimpicamente da experiência da vida. Esta caricatura parece retratar bem quem se considera filósofo cético e entende a Filosofia como uma atividade mais próxima da Arte que da Ciência, mais inclinada para o sentido que para a exatidão. Pois bem, vou defender a tese aparentemente paradoxal de que quanto mais cético se é, mais irrenunciável se torna a experiência da vida, isto é, as evidências fundamentais extraídas penosamente do curso dos acontecimentos, no lidar com a realidade, como sabedoria vital conquistada depois das decepções e dos prazeres que preenchem os azares duma biografia finita.

O ceticismo conseqüente tem de começar por desconfiar da dúvida absoluta sobre a realidade. No célebre prólogo à segunda edição da Crítica da Razão Pura, Kant falava de um “escândalo da Filosofia” que consistia no fato de a existência do mundo exterior se basear na fé e não ser possível dar suficientes provas a quem se obstinar em duvidar dela. Heidegger dizia em Sein und Zeit que o verdadeiro escândalo consistia antes em haver alguém que esperasse essas demonstrações. O ceticismo razoável põe-se ao lado de Heidegger na medida em que duvida da dúvida sobre a existência da realidade, ou pelo menos não renuncia ao hábito — formado na experiência da vida — de nestes casos o ônus da prova caber ao acusador. Aquilo que na vida se mostrou como sendo uma garantia processual que serve a justiça não pode ser ignorado no exercício da teoria.

A ocupação do filósofo só pode justificar-se porque conduz a um ganho de experiência, com tudo o que isso comporta: descoberta, sentido, compreensão, orientação. Se a Filosofia fosse unicamente negativa teria desaparecido com a verificação de que a realidade não é somente o palco da desolação e do sem-sentido, como pareceria agradar aos apologistas da amargura. O pessimismo e a crítica que ultrapassam as fronteiras do razoável convertem-se num implacável tribunal que se dedica a estender arbitrariamente a contingência do mundo, a não reconhecer os testemunhos que dizem haver um sentido — incoado, modesto — naquilo que se nos oferece e no que fazemos com isso. O homem teórico excessivamente seduzido pela crítica colabora assim — provavelmente contra as suas intenções — na ampliação do alcance da irrealidade, diminuindo ao mesmo tempo o trabalho da experiência. Um vazio imenso começa a abrir-se aos pés da sua atalaia. O estereótipo de filósofo-que-suspeita torna-se por sua vez suspeito de nada ter de interessante para oferecer, e de que o seu martelar filosófico não passa de uma vingança ressentida contra a sua própria cegueira. E será melhor que não nos atinja essa perigosa síntese de detração e violência.

A Filosofia é atenção e aprendizagem, experiência ganha nas relações — nem sempre fáceis e gratificantes — com a realidade. E além disso, pretendo mostrar como este ganho de experiência que proporciona não afasta a Filosofia da Arte, mas antes pelo contrário. A Filosofia e a Arte são igualmente culturas da atenção para com a realidade, e não exercícios de detração. A Filosofia pode ser considerada como uma das Belas Artes na medida em que coopera com ela na ampliação e concentração do nosso sentido da realidade. São verdadeiras estratégias de resistência contra a desrealização.

Existe uma tradição filosófica que descreve a História da Humanidade em termos de progressiva desilusão, como um ganho de sentido da realidade. No princípio era a fantasia e o fictício, agora regem a observação e a experiência. Permitam-me desconfiar desta épica da desconfiança. A experiência diz-nos que andamos com mais falta de experiências e com excesso de credulidade. Vendo bem as coisas, o nosso mundo oferece também o aspecto de uma ingenuidade não ultrapassada, crescente até. Poder-se-ia afirmar que o conteúdo ilusório da realidade oficial aumentou na cultura moderna.

Este mundo moderno é um mundo de crescente aceleração, de progresso. O Iluminismo tinha, basicamente, pressa. Com ele introduziu-se uma premente necessidade de tempo, pois era preciso recuperar o atraso da razão. E, para recuperar, o único processo era acelerar os processos. O tempo, que até então não era mais que um meio em que apareciam ações e atores, converte-se num poder a que tudo se confia em virtude da sua mera quantidade. Esta mudança de escala haveria de ter como conseqüência o fato de o indivíduo se ver atirado, naquele formato universal, entre o entusiasmo pelas novas dimensões dos projetos históricos e o desconsolo perante a sua insignificância pessoal. As tarefas públicas sobrepõem-se à preguiça privada, a expectativa histórica deixa para um segundo plano as experiências pessoais, entre as quais está a evidência da nossa finitude e a sabedoria da paciência. O novo formato do tempo acelerado das expectativas dá-se ao luxo de prescindir do tempo lento da experiência. No turbilhão da aceleração, a experiência torna-se cada vez mais importante, pois cada vez envelhecem mais rapidamente as situações nas quais e para as quais se obtiveram as experiências.

Por isso é próprio dos processos que começam com uma iniciativa ética para continuar com uma inércia cinética. Aquilo a que poderíamos chamar heteromobilidade catastrófica consiste no fato de que quem se mover, move algo mais que ele próprio. Quem faz a História, faz algo mais que História: faz Destino. É o excesso cinético que ultrapassa os limites até chegar ao não pretendido. Esse mais fatal é a dinâmica das massas mortas que, uma vez postas em movimento, já nada querem saber de finalidades morais. O fatalismo é a outra face do ativismo irreflexivo. Será possível, então, fazer algo? Sim, com a condição de se pressupor uma continuidade que realmente não existe, isto é, atuando a partir da ficção de que as coisas não mudaram ou não mudaram tanto. Pelo menos, que não houve uma mudança significativa desde que começou a nossa reflexão e menos ainda desde que tomamos a decisão e a pusemos em prática. Este paradoxo é especialmente agudo nas ações que, pela sua dimensão ou pelo número elevado de sujeitos que estão implicados, precisa de muito tempo. Enquanto o tempo decorre — e além disso aceleradamente — mudam também os dados a partir dos quais se começou a atuar, e a retificação nem sempre é possível ou benéfica. Então é necessário ignorar as novas condições, agir como se elas não existissem, no pressuposto de que as coisas estão como ao princípio. Sem estas ficções seria impossível acabar qualquer empreendimento. Onde tudo flui, as ações são forçadas a tornarem-se ficções. Só é possível agir suspendendo ficticiamente o curso do tempo. Luhmann falou a este respeito da necessidade de reduzir a complexidade, mas ninguém ignora que toda a simplificação contém uma mentira piedosa ou, melhor dizendo, progressista.

Tratando-se de política, a observação de Luhmann é muito verdadeira. O número crescente de participantes nas decisões faz com que não seja possível controlar todos os especialistas (nem mesmo alguns), pelo que se impõe fazer de conta que estão controlados: damos-lhes crédito e assim colocamo-nos nas suas mãos. Esta é a conseqüência da sua tese segundo a qual o incremento de racionalização exige um incremento de confiança, até ao ponto de não se saber se se acredita ou se se sabe (ou se finge saber, que é o mais provável tratando-se, por exemplo, de política econômica). Esta nova necessidade de acreditar, instalada no núcleo da sociedade tecnológica, pressupõe um incremento do número de inexperientes, uma diminuição da experiência própria, que não proporciona qualquer indicação acerca do que se deve fazer perante as situações inéditas. É um dos modos em que se manifesta que a racionalidade do mundo moderno não reduz o espaço do ilusório: antes o aumenta.

Outra indicação da presença crescente de ficções no mundo moderno é a perda de experiência que ocorre quando é substituída pela expectativa. Vivemos numa cultura que está cada vez mais disposta à ilusão. Quem não tem experiência tem mais facilidade em criar ilusões. Isto tem muito a ver, sem dúvida, com o já mencionado envelhecimento das nossas experiências, o que nos faz ter saudade daquela infância em que o mundo não nos era ainda estranho. Se não se tiverem experiências que possam ser significativas no momento presente, a nossa expectativa em relação ao futuro não pode ser medida — ou em geral moderada — pelas experiências (geralmente más) de que dispomos. A expectativa não controlada pela experiência amplia-se e tende a tornar-se ilusória. Aparecem as super‑esperanças e os super‑medos que tão bom acolhimento têm entre os desmemoriados.

Já sei que colocar-se imediatamente e sem condições a favor da utopia é tão mal visto como interromper por um momento a queixa e ver o que de positivo existe na realidade. Mas às vezes a utopia não é senão uma renúncia a melhorar o que existe em nome do imelhorável. Creio que o nosso campo de ação se define noutros termos. É preciso mais coragem para pôr à prova uma opinião ou um juízo que para navegar no reino das possibilidades jamais contrariadas. É que a experiência provavelmente não será outra coisa senão o nome que damos à aprendizagem que resulta do insucesso, do desmentido duma expectativa pelo veto interposto pela realidade. As experiências são o bom resultado da crise das expectativas.

O ruim é a puerilidade. Quando a força de desmentir que é própria da experiência gira no vazio, o princípio de realidade perde progressivamente a possibilidade de fazer se valer. Aparece aquilo a que Koselleck chama “o vazio entre a expectativa e a experiência”10. Os homens convertem-se em “esperadores” sem experiência, em iludidos. Soltas as amarras com o passado e com o presente, as expectativas que se dirigem ao mais distante e futuro adquirem um tom patético. A este respeito, Koselleck denominou a modernidade de “era das unicidades”. Nela não só se unificam os progressos no Progresso, as liberdades na Liberdade, as histórias na História, mas também, sobretudo, as expectativas na Expectativa: numa única e absoluta Expectativa Total que está acima de toda a satisfação real — e, portanto, de qualquer decepção —, pois está decepcionada a priori com o dado, de tal forma que esperança e decepção confluem numa atitude a que poderíamos chamar de indignação contínua. O princípio esperança converte-se assim em princípio fanatismo, aquilo a que em alemão se chama Unbelehrbarkeit, isto é, literalmente: impossibilidade de ser ensinado, de aprender, incorrigível. O mal do doutrinarismo é ele não ter remédio. A indisposição habitual para ser corrigido pelas experiências agudiza a perda de experiência. Condena o homem a existir esperando ainda e tendo deixado já de experimentar.

10.

R. Koselleck, Vergangene Zukunft. Zur Semantik geschichtlicher Zeiten, Frankfurt: Suhrkamp, 1979, p. 349.

Ao falar de experiência há que distingui-la cuidadosamente da experimentação científica, pois não são a mesma coisa. Mais: estão até numa relação inversamente proporcional. É precisamente na era moderna — caracterizada por uma perda crescente da experiência — que se dá o apogeu das ciências experimentais. Onde diminui a capacidade para a experiência da vida, torna-se necessário salvá-la mediante uma delegação nos especialistas do empírico. Mas o paradoxo consiste em que quanto mais exata — mais especializada — for a elaboração que os especialistas façam da experiência, menos podemos acompanhá-los, e vemo-nos obrigados a aceitar experiências que nós mesmos não fazemos e que, portanto, não são experiências da vida, da nossa vida. A Ciência conduz à fé... na Ciência e nos cientistas. Na medida em que os especialistas da experimentação científica fazem do mundo — para dizer com Kant — “objeto da experiência possível”, o mundo deixa de ser objeto da experiência própria.

O fenômeno correlativo no campo da ética é a apriorização das expectativas morais, a resposta menos oportuna à perda de experiência: a renúncia explícita a ela, ou seja, o apriorismo que — apesar da acertada crítica hegeliana, que aparentemente foi infrutuosa — converteu-se num sinal de identificação de grande parte da ética posterior a Kant e que culmina na atual ética discursiva que absolve a quem desejar as faltas por omissão em matéria de experiência.

As tentativas de fazer uma ética sem experiência apóiam-se na suposição de que vivemos numa era pós-convencional, o que nos condena a produzir toda a nossa orientação existencial a partir do discurso ético-filosófico. Creio que tem razão Odo Marquard quando se declara cético face à declaração “fundamentalista” de que há que partir do zero: não estamos assim tão mal11. O apriorismo da ética discursiva exige que toda a moral se fundamente num discurso universal livre de domínio a que acedemos com a predisposição de nos deixarmos convencer pela força do melhor argumento. Ora bem, essa disposição para relativizar o ponto de vista próprio e para ouvir os outros apóia-se já numa atitude moral não deduzida de nenhum discurso, mas sim da experiência da vida, que nos ensinou esta obrigação elementar.

11.

Cf. Das Über-Wir. Bemerkungen zur Diskursethik, em Das Gespräch, K. Stierle e R. Warning (eds.), Munique: Fink, 1984, pp. 29ss.

O discurso não pode ser fundamento, começo absoluto. Sem uma experiência moral fundamental, nem sequer o próprio discurso pode iniciar-se.    Qual será então a força argumentativa em matéria moral? Não sei exatamente, mas em qualquer dos casos será muito limitada. Uma sociedade em que a vida de seres inocentes se tivesse de proteger unicamente com argumentos — em que não houvesse nenhuma “convencionalidade” prévia sob a forma de compaixão espontânea, de atenção ao outro, de sinceridade, de repugnância perante a dor injusta ou de sentido do ridículo —, seria melhor abandoná-la à sua sorte e, é claro, manter-se o mais afastado possível dos torturadores sem pretender convencê-los. Se tudo tivesse de ser salvo pela ética filosófica, seria um indício de que já nada resta para ser salvo. Felizmente, a experiência da vida ensina-nos que não estamos assim tão mal.

Aristóteles afirmava que a ética não era própria para jovens porque estes não tinham experiência da vida. Esta opinião pressupõe que a ética é uma tematização da experiência da vida que já se tem e não uma fonte de futuras convicções. Da ética esperava o aperfeiçoamento da arte de viver, uma ajuda para confirmar ou corrigir os costumes da vida, insubstituível por um artifício argumentativo. Mas para isso é preciso uma certa idade. Essa experiência da vida comparecerá, sem dúvida, num discurso moral mas não se adquire nele. Se a moral “laica” quiser dizer o que o termo significa — inexperiente, leigo na matéria, ignorante —, indicaria que se espera demasiado da ética e que dão muito pouco valor aos que não somos catedráticos da matéria. Não estamos tão mal como pensam os anunciadores da pós‑convencionalidade. A extensão de uma espécie de docta ignorantia universalis como condição de acesso à elaboração mútua de obrigações morais provoca no honrado homem médio a sensação de que o feito até àquele momento era uma indecência.

Ao contrário de Aristóteles, o ponto de partida de Kant é catastrofista. Parece mais interessado em dar lições a quem não quer ser bom do que em melhorar aquele que já está convencido, ao cidadão cuja honestidade é suposta — enquanto não se demonstrar o contrário —, verdadeiro e único sujeito da ética (que nem o perfeito nem o desalmado necessitam, pois ambos são igualmente incorrigíveis). Kant parece pressupor que não há nada em que apoiar-se, uma convicção inicial, algum valor pacificamente compartilhado, uma preferência de princípio pelo bem, um desejo de felicidade que não signifique necessariamente mal alheio. O acesso ao ponto de vista do imperativo moral tem estatuto duma conversão. Poder-se-ia dizer muito bem que o homem é um estudante de ética que não deixará de ser reprovável enquanto não tiver aprovado a disciplina.

A ética de Kant é uma resposta à pergunta: como será possível uma ética independente da experiência? O apriorismo ético é a negação da experiência da vida como instância ética. Não é por acaso que se dirige primordialmente aos casos de conflito ético em que as convenções a experiência da vida parecem não oferecer qualquer solução até que aparece a tábua de salvação de um imperativo formal. Para Aristóteles, em compensação, o conflito não é o ponto de partida. Por isso dedica a sua ética ao acerto acessível a todos, a uma virtude que não pressupõe uma vitória, e transfere os conflitos para a competência dos poetas trágicos.

A atual crise da experiência por causa da renúncia ou desaparecimento da experiência da vida é o que faz com que aumente a necessidade das ciências do espírito, dos saberes humanísticos, da consciência histórica e da experiência estética, da Filosofia. A recuperação do sentido da realidade requer outro ritmo. Efetivamente, vivemos num mundo acelerado, mas também temos ao nosso alcance meios para compensá-la. A realidade oficial da aceleração é sempre acompanhada pela realidade alternativa da lentidão. Mais ainda: é precisamente num mundo rápido que há que ser lento para se ser realista, isto é, para se ser um pouco mais cético, para acreditar menos nas experimentações e nas expectativas, para não confiar tudo a um discurso universal definitivo. Refiro-me a essa espécie de ceticismo que se baseia na experiência da nossa finitude, da escassez de tempo, da necessidade de contar com o dado, de renunciar ao patetismo crítico e olhar com desconfiança para as expectativas desmedidas.

A velocidade não vence completamente a lentidão; antes acontece precisar dela para reparar as suas próprias disfunções, e com freqüência vai ter com ela secretamente. Se, por exemplo, o nosso tempo se caracteriza por uma crescente aceleração, isto significa que as nossas experiências envelhecem cada vez mais rapidamente. É este o problema da obsolescência que acompanha qualquer aceleração; a criação de novidades incrementa o que tem de ser deitado fora. À inovação segue-se o cemitério. Uma cultura do lixo é sempre acompanhada por outra da reciclagem. Se no âmbito da Ciência e da técnica aumenta o envelhecimento, recai sobre o das letras a tarefa de resgatar as significações das particularidades agonizantes que não merecem perecer.

Após a revolução vem o museu, isto é: o sentido estético e o sentido histórico. Onde cresce a estranheza cresce também a necessidade de interpretar o passado. A era do desperdício é também a era do museu e do monumento, dos parques naturais, da proteção do sentido de continuidade histórica, da ecologia física e da ecologia do espírito, que são precisamente as humanidades, os saberes da interpretação e da lembrança, da lentidão. A primeira experiência que se adquire com o estudo da história á a seguinte: quanto mudou onde quase nada mudou! E a segunda diz assim: que pouco mudou onde quase tudo mudou e onde — como é o caso do mundo moderno — mais coisas mudam e mais depressa! No mundo da mudança acelerada habita também a lentidão necessária para não perecer nessa mudança, para o tornar inofensivo, menos estranho. Ajuda a ultrapassar a insatisfação face ao mundo que — sob a forma de desorientação ou perplexidade — surgiria perante a impressão de caducidade generalizada.

Num mundo acelerado cresce portanto a estranheza, diminui a experiência. As nossas experiências envelhecem com crescente rapidez. O mundo amplia-se enormemente, mas — como já indiquei — as experimentações técnico-científicas que o sustentam não estão ao nosso alcance. Nos cientistas acredita-se neles. O que disso resulta é que nos vemos impelidos a substituir as experiências por expectativas ilusórias, até que finalmente deixamos de perceber a realidade por culpa da ilusão: a própria realidade adquire o estatuto do ilusório (a confiança no cientista, o jogo de vídeo, a realidade virtual, o pânico nas bolsas, a cultura da imagem, o boato, a simulação política...). Se as ciências físico matemáticas se apoderassem do monopólio da experiência, nós os não instruídos viveríamos num mundo irreal, de pura crença, apoiado em experimentações sofisticadas cuja validade não poderíamos verificar. Porém, felizmente, existem as letras que toda a gente entende mais ou menos, para as quais não há uma fronteira exata entre profissionais e amadores, nem áreas de competência exclusiva. Os humanistas são julgados.

Nesta situação, os saberes humanísticos são um caminho de retorno do fictício à realidade. Aparentemente, têm mais a ver precisamente com o contrário: mundos irreais, mitos ultrapassados, livros envelhecidos, teorias etéreas, sentidos indemonstráveis, horrores e belezas em estado puro, gestas e tragédias... A expressão de Verlaine “et tout le reste est littérature” designa precisamente essa identificação da Arte com a falsidade retórica ou, pelo menos, com a insignificância cognitiva. Face a este preconceito, Marquard propôs reunir o melhor da concepção romântica da Arte como anti-ficção, cuja tarefa não se realiza no âmbito do fictício, mas é um instrumento para obter experiências — por isso, Schelling chamava a Arte de “o órgão da Filosofia” —, de reflexão e atenção. Longe de ser um entretenimento trivial, a Arte tem a ver com o que é “grave e constante” (James Joyce) no mistério da nossa condição. O seu rendimento cognitivo — ao apresentar-nos a condição humana duma forma que nos é inédita e familiar ao mesmo tempo, pois toda a gente entende a dor e o choro, todos sabemos de amores e de traições — pode ser de grande relevo numa sociedade precipitadamente dividida entre leigos e competentes.

O mundo da Arte permite enriquecer as experiências sem deixarem de ser nossas. Por isso pode contribuir para deixar de ser necessário adquirir competência técnica em troca de rudeza cultural ou pagar com um analfabetismo tecnológico a privacidade cheia de sentido. Por outras palavras: para que não se tenha de optar entre a lentidão e a pressa, entre a experiência e a perplexidade. Porque a Arte é o que mais resiste ao envelhecimento; a sua constância e duração constituem o núcleo da sua chamada de atenção sobre esse aspecto e esse ritmo desatendido na superfície da aceleração.

A Arte é experiência, isto é, caminho de acesso à realidade. Esta concepção da Arte é a antítese de determinado estereótipo tardo-romântico que a entendia como embriaguez auto-referente. Encontramos um exemplo deste tipo na oposição entre conhecimento e Arte, tal como é estabelecida por Nietzsche no seu comentário a uma fábula posta na boca de “um espírito sem sentimentos” e que faz parte de um texto póstumo intitulado Sobre o pathos da verdade:

“Num qualquer distante recanto do universo que se derrama reluzente em incontáveis sistemas solares, houve uma vez uma estrela onde astutos animais inventaram o conhecer. Foi o minuto mais arrogante e embusteiro da humanidade, mas foi só um minuto. Depois de umas poucas respirações da natureza, a estrela gelou e os astutos animais tiveram que morrer. Aconteceu no momento exato: embora se tivessem vangloriado já de terem conhecido muito, chegaram finalmente, por detrás, à grande amargura de que tinham conhecido tudo falsamente. Morreram e fugiram com o desejo da verdade. Assim foi a casta de animais desesperados que tinham inventado o conhecer.”

Esta seria a sorte do homem se fosse precisamente apenas um ser que conhece; a verdade lançá-lo-ia no desespero e no aniquilamento, a verdade de estar eternamente condenado à não-verdade. Mas ao homem apenas lhe convém a fé numa verdade alcançável, numa ilusão que aproxima cordialmente. Não vive precisamente de um contínuo ser iludido? Acaso a natureza não lhe esconde a maioria das coisas, precisamente o mais próximo, por exemplo o seu próprio corpo, do qual apenas tem uma enganosa “consciência”? Está encerrado nesta consciência e a natureza deitou a chave fora. Ai da funesta paixão do filósofo pelo que é novo, que exige que se olhe por uma fenda para o exterior dessa habitação da consciência! Talvez vislumbre então que o homem está fixo na avidez, na insatisfação, na repugnância, na impiedade, no criminoso, dependurado ao mesmo tempo da indiferença da sua ignorância e das costas de um tigre que está dormindo.

“Deixa-o dependurado”, diz a Arte. “Acorda-o”, diz o filósofo no pathos da verdade. Mas este naufraga, enquanto julga estar a agitar aquele que dorme, num mágico adormecimento ainda mais profundo... Talvez sonhe então com as “idéias” ou com a imortalidade. A Arte é mais poderosa que o conhecimento, pois ela quer a vida, ao passo que o outro apenas alcança como último fim o aniquilamento12.

12.

KSA, 1, pp. 759-760.

A contraposição de Nietzsche explica-se, e ao mesmo tempo é devedora, pela restrição racionalista que tentou assimilar o verdadeiro ao apodítico e exato, enquanto entregava o vasto espaço da opinião, do razoável, do relato verossímil ao sombrio poder da irracionalidade. Reconhecer que existe uma dimensão cognitiva na Arte e uma dimensão artística na Filosofia apresenta-se como sendo a única forma de ultrapassar a estéril oposição entre o discurso da verdade objetiva e o da ficção fantasiosa. A Arte e a Filosofia conspiram juntos na tarefa de ampliar a experiência humana e fortalecer a sua atenção. Estão igualmente tão interessados na vigília do homem que não gostariam de pagar com o preço de despojar a realidade de riqueza e significado. Ambos rejeitam ter de optar entre os fatos e o sentido. As ficções são susceptíveis de uma verossimilhança que se torna patente no seu rendimento cognitivo ao explorar as possibilidades humanas. Isto não significa que a Arte seja a ilustração de uma tese filosófica.

A única razão de ser da Arte consiste em dizer aquilo que tão-somente a Arte pode dizer. Trata-se de esclarecer esteticamente o mundo da vida aventurando-se no reino das possibilidades humanas. Efetivamente, a Arte dá consolo, mas podemos distinguir entre os consolos legítimos e os demasiado fáceis ou escapistas. Da Arte não queremos só que nos console, mas que faça descobertas sobre a dura realidade, que suavizem mas não ocultem o verdadeiro dramatismo da vida. Nisto não há nada de perverso. Só os livros que fazem passar o possível por real; os que pretendem suplantar a vida e nos impedem de dar atenção à realidade; os que nos transportam temporariamente a um âmbito do qual regressamos sem qualquer ganho; os que não ajudam a compreender melhor a existência humana; só estas mentiras inverossímeis merecem acabar, uma vez passado o efeito da droga, na lixeira das seringas descartáveis.

A parábola de Nietzsche pode ser mais verdadeira se invertermos e trocarmos os papéis. Muitas vezes a Filosofia contém menos realidade que a Arte e deixa-nos literalmente dependurados, ao passo que a Arte é um meio colossal de estimulação. Quanto mais a realidade moderna tende a passar da experiência para a expectativa, mais a Arte moderna tende a percorrer o caminho inverso e salvar esteticamente a experiência. Não se trata tanto de descobrir o estético na experiência diária, quanto de salvar a experiência diária no estético. Mas isto só é possível se o estético (a Arte e a sua recepção) for entendido e querido como experiência. O que por sua vez, não se consegue apesar de o estético ser um prazer, mas justamente por que o é, por ele ser um dom, uma posse: o prazer da experiência13. O prazer recupera a força da experiência para desmentir e para aprovar que tinha desaparecido na presença da rigidez subjetiva ou na nebulosa duma expectativa sempre distante.

13.

H. R. Jauss chamou a atenção para este aspecto esquecido pela ascética estética da negatividade: “a ação de desfrutar, desencadeada e possibilitada pela arte, é a experiência estética original” (Kleine Apologie der ästhetischen Erfahrung, Constança: Universitätsverlag, 1972, p. 7).

A experiência estética confirma-nos no que somos e esperamos, mas faz-nos gozar com o cumprimento duma expectativa. Volta a lançar uma ponte entre a experiência e a expectativa. Graças à experiência estética pomos cobro à nossa desatenção e desacordo perante o que já somos, e ao mesmo tempo liberta-nos da suspeita de não estarmos fazendo outra coisa senão um exercício de autocomplacência, tira-nos de cima as vistas curtas, o ficarmos cegos e néscios. E a estupidez mais habitual — a que rege o mundo de hoje: “que difícil está sendo para nós conseguir avançar” — é a expectativa etérea e inexperiente que — como não conhece plena satisfação — se vira contra o mundo dado para o anular em nome da salvação, embora geralmente a aniquilação não seja mais que uma incapacidade de reconhecer todo o bem que não for resultado da nossa esforçada construção.

Um sujeito assim é contrariado e retificado pela experiência estética, na medida em que esta mantém e conserva o mundo que estava a ficar distante para o negador. A experiência estética transforma os antolhos em horizontes, desilude e pluraliza as expectativas pelo leito do beau relatif. Se isto é assim, todos os vocábulos com pretensão de ocupar um lugar central na definição da Arte — utopia, manifestação, crítica, provocação, revolta — deveriam ceder o lugar a outros mais tranqüilos e reflexivos: experiência, prazer, variação, pluralidade, lembrança, catarse, identificação. A arte da expectativa deve ser substituída pela arte da experiência para travar essa crescente estranheza do mundo, esse peculiar contemptus mundi da desrealização. As obras de arte são os meios de que a realidade se serve para nos seduzir, são aprovações do que existe, evidências contra as escatologias precipitadas, remédios contra o abandono do mundo.

O filósofo que não atenta às seduções do real converte-se num ser hostil e pouco simpático, desconhecedor do prazer da descoberta. O seu pathos crítico leva-o a ter dificuldades para dizer que sim, para aprovar14. O gesto de descontentamento perante a realidade já faz parte do estereótipo filosófico e dá a entender que dizer não é a autêntica relação com a realidade. A este respeito Marquard fala duma saudade do mal-estar no mundo do bem-estar. A cultura fora definida por Gehlen como uma descarga do negativo; graças a ela, os homens são aliviados do perigo, da doença, da necessidade, do cansaço, do medo. Os homens têm, portanto, uma inclinação para negar, para se desfazerem do negativo. Quando o negativo vai desaparecendo da realidade, não desaparece ao mesmo tempo a inclinação humana para negar. Fica desempregada e procura novas ocupações — males —, e encontra os precisamente naquela cultura que liberta do negativo, precisamente porque liberta do negativo. Inicia um turismo frenético à caça de confirmações do sinistro.

14.

Cf. Odo Marquard, Einheit und Vielheit. Ein philosophischer Beitrag zur Analyse der modernen Welt, em Stifterband für Deutsche Wissenschaft: Mitgliedversammlung, Stutgard: 8 de Maio de I986, pp. 11-19.

Por causa desta saudade do mal-estar no mundo do bem-estar, o próprio bem-estar acaba por ser denominado mal-estar. Quanto melhor nos correm as coisas, pior nos parece aquilo em virtude do qual nos corre melhor. A descarga do negativo conduz à negativização do que efetua a descarga. Mencionarei alguns exemplos desta inclemente inversão da inclinação para negar: quantas mais doenças a medicina vence, mais se tende a declarar a própria medicina como doença; quantas mais vantagens a química proporciona à vida humana, mais se faz credora da suspeita de ter sido inventada para o envenenamento do homem; quanta mais repressão a democracia liberal poupa, mais ela própria é increpada como repressiva. Talvez seja esta inversão que explique também que, precisamente numa cultura que consegue ultrapassar as crises, se tenda a conceber a própria cultura como crise.

Gostaria de mencionar um exemplo de cegueira filosófica e pathos de proximidade do fim do mundo observado do despiste transcendental disfarçado de privilégio. Num seminário que se realizou em 1942 sobre a Teoria das necessidades e cujo protocolo para a discussão foi publicado há pouco tempo nas Obras Completas de Max Horkheimer, recolhem-se algumas observações, sem dúvida muito esclarecedoras, do alcance da teoria crítica15. No momento em que se pressentia a possibilidade de o capitalismo poder satisfazer em grande medida as necessidades elementares, aparece uma nova preocupação: que os homens não se preocupem com “as coisas mais elevadas” quando estão satisfeitos. Numa discussão com o romance de Aldous Huxley, Admirável Mundo Novo, exprime-se o medo de que a supressão da necessidade pudesse equivaler à supressão da cultura. Com o desaparecimento dos velhos medos insinua-se uma nova ameaça. Adorno qualifica a reação dos intelectuais perante a máquina da coisificação como “pânico”16. Horkheimer declara que “se se estabelece uma distinção entre as necessidades materiais e ideais, há que manter-se, sem dúvida, na satisfação das materiais, pois nesta satisfação está implícita a mudança social”. Esta pretensão de realismo traduz-se no empenhamento para evitar a demência que significaria apelar a exigências individuais. Na tranqüilidade crítica do seminário, Adorno faz a seguinte afirmação: “não é que a pastilha elástica danifique a metafísica; é que a própria pastilha elástica é já metafísica”. A má Filosofia é expressão de que os homens, na abundância da vida assegurada, acabam por se entender com a miséria e a injustiça. A metafísica é uma distração.

15.

Cf. Gesammelte Schriften, Frankfurt: Fischer, 1985, 12, pp. 559-586.

16.

A posição de Adorno, posteriormente matizada, será recolhida no seu texto Aldous Huxley und die Utopie, inserido em Prismen, Gesammelte Werke, Frankfurt: Suhrkamp, 1977, 100, pp. 97-122.

A discussão continua com a inquietação não dissimulada de que a supressão da necessidade pudesse ser levada a cabo pelo capitalismo e não pelo socialismo. A teoria crítica da cultura deveria garantir que a necessidade não fosse vencida pelo falso salvador. Era este o sentido da transformação da Arte e de toda a cultura em crítica. A Arte é a guardiã dessa verdade utópica. Por isso a Arte é desrealizada num sentido inédito: “falamos hoje de Arte, embora ela não exista”. Na Arte que não se perdeu na cultura “esconde-se um pressentimento da situação em que não haverá domínio”.

Uma confirmação de que a idéia duma sociedade sem classes é o único pensamento que está livre de toda a suspeita de ideologia é dada por Horkheimer quando confessa: “tudo o que tenho de afirmar refere-se à sociedade sem classes; o resto cai-me das mãos como uma mentira”. Esta perspectiva trazia consigo a exigência de manter o ideal afastado de qualquer tentativa de preenchê-lo de conteúdo através duma intuição ou identificá-lo na realidade de algo presente. A vacuidade do ideal é a condição da sua pureza incontaminada. “É difícil, pensa Horkheimer, dizer como será a sociedade sem classes.” Só podemos ter a certeza de que tudo aquilo a que atualmente se chama cultura é mentira. “Os discos do gramofone não existem senão para acabarem com a idéia da sociedade socialista. Porquê definir como valor algo que sabemos que só existe hoje para impedir a sociedade sem classes?” Se a cultura presente for excluída de participar no futuro abstrato, isto significa que a cultura atual num sentido afirmativo só é possível como crítica da cultura. Qualquer tentação de construir pontes entre o presente e o futuro é afastada nestas discussões. Todas as objeções contra a realidade da caverna — sobre a qual os filósofos deveriam atuar — são tão fortes que ao filósofo apenas lhe resta a função de erguer-se em vigilante. No fundo da caverna rege uma cegueira tão generalizada que, como diz Adorno num juízo severo sobre as peças de Beckett, “até a morte sai mal”. O apocalipse é o ponto de fuga negativo da relação em direção à idéia original.

Nestas discussões, a dialética é o oscilar entre perguntas ingênuas e respostas dogmáticas, um esforço para se salvar da ruína total pressagiada pela imagem espectral de um fascismo onipresente. A sua recusa em claudicar perante o que existe confere aos filósofos um gesto crítico, dá-lhes a aparência de estar a proferir um juízo definitivo. Mas a idéia de uma sociedade sem classes não é mais do que um ticket que permite libertar-se das lealdades face às circunstâncias em que se vive, circular com um orgulho filosófico que vive do desprezo de todo o saber empírico, desacreditar a empiria limitada dos habitantes da caverna. Num excelente comentário do mito platônico da caverna e da sua recepção histórica, Blumenberg falou — a propósito do filósofo que viu as idéias e vem mostrá-las aos habitantes da penumbra interior — das “mãos vazias daquele que regressa”17. Esta vacuidade é outra maneira de referir-se à falta de experiência. A verdadeira ingenuidade filosófica não é essa falta de experiência que se dissimula com um gesto de superioridade sobre o real.

17.

Cf. Höhlenausgänge, Frankfurt: Suhrkamp, 1989

II. A RAZÃO NARRATIVA

Aproximou-se do Senhor. K. um professor de Filosofia, e falou-lhe do seu saber. Depois de um tempo, disse-lhe o senhor K.:

— Sentas-te desagradavelmente,
falas desagradavelmente,
pensas desagradavelmente.

O professor de Filosofia enfureceu-se e disse:

— Eu não queria saber algo sobre mim, mas sim sobre o conteúdo do que eu digo.

— Não há nenhum conteúdo — disse o senhor K. — Vejo-te andar desajeitadamente, e não chegas a nenhum lado quando te vejo andar. Falas obscuramente, e não crias nenhuma luz quando falas. Vendo os teus modos, não me interessam os teus fins.

BERTOLD BRECHT, Geschichten von Herrn Keuner

1. A crítica da verdade nua

Que os filósofos tenham tido sempre dificuldades para se explicarem é um fato que depende metade da dificuldade do assunto e metade da sua imodéstia. A grande cartada costuma ser a pobreza dessa linguagem desajeitada, concedida por um deus pouco generoso que se alegrasse com o nosso balbuciar.

Husserl estava já moribundo e acordou de um sono profundo com uma expressão de felicidade no rosto e abrindo os braços afirmou: “Vi uma coisa completamente maravilhosa. Não, não te posso dizer o que foi. Não!” É difícil adivinhar os sentimentos da mulher quando ouviu tão enigmática afirmação, mas alguém que esteja familiarizado com a trabalhosa obra do fenomenólogo não poderá evitar um novo desânimo. Coitado! Até naquele último momento ele vira qualquer coisa e não podia dizer o quê! De novo uma dificuldade para se explicar. A visão é a justificação de todo o conceito e, ao mesmo tempo, uma imediatez que não se pode traduzir em palavras frouxas. Era como se existisse uma rivalidade de princípio entre as palavras e as coisas, uma diferença irrecuperável entre o visto e o dito, da qual é responsável a pobreza da linguagem (que é uma forma delicada de lamentar a cegueira do auditório).

Este fato foi motivo freqüente de queixas. A realidade lingüística da Filosofia está enraizada num longo processo de elaboração de conceitos mantido com maior ou menor sorte. Poder-se-ia falar, por isso, de um lastro genético da linguagem filosófica. Não são poucos os pensadores que combateram de diversas formas contra os conceitos sobrecarregados, hipotecados, equívocos, da tradição filosófica. Desde que o grito “Vamos às próprias coisas!” deu um novo impulso à Filosofia, ocorreu uma verdadeira erupção de conceitos novos ou que pelo menos se apresentavam como tal. A linguagem diária foi questionada, acusada de abrigar significados clandestinos e de colaborar na dissimulação, na cosmética enganosa e até no travestismo conceitual. A fala de validade geral estaria portanto tão predeterminada por uma carga de pluri-significações tradicionais que não pode converter-se em órgão de acesso original às coisas.

No texto de Husserl A Filosofia como Ciência Rigorosa a atividade filosófica recebe a função de dirigir a atenção para os fenômenos, remeter para eles, indicá-los, aludi-los, mostrá-los. Mas esta remissão pressupõe que a evidência do fenômeno supera em conteúdo e riqueza o termo ou enunciado “emissor”. Poder-se-ia questionar o princípio fenomenológico segundo o qual a solução de um problema é equivalente a sua formulação exata; é mais espantoso acreditar que seja possível uma descrição perfeita, aquilo a que Husserl chamaria a “universalidade da coincidência entre linguagem e pensamento”18 como pressuposto e termo da atividade filosófica, da qual deve esperar-se a “expressão fiel de uma objetividade clara”. O mais fascinante da fenomenologia é a ingenuidade de uma consciência que se sabe no começo de um empreendimento gigantesco, apetrechada com um método definitivo e avista — ainda que seja numa vaga distância — uma plenitude conceitual.

18.

Formale und transzendentale Logik. Gesammelte Werke. Husserliana: Haia, 1974, t. 17, p. 22.

A longa história da metáfora da “verdade nua” ou da “pura verdade” começa — segundo as minhas notícias — no terceiro livro das Divinae Institutiones, onde Lactâncio — curiosamente um dos grandes retóricos do século IV — fala duma nudez natural da verdade querida por Deus, que o ornamento retórico não faz mais do que maquilar com o excesso próprio da mentira, ao passo que a verdade simplex et nuda é suficientemente eloqüente, quia satis ornata per se est (III, 1, 3). Realmente a nudez não é nudez, e a metáfora é, neste caso, uma simples forma de dizer. É utilizada por uma retórica que pretende combater os excessos da retórica. Mas ainda não adquiriu esse meio termo literal que pôs em marcha o projeto moderno de strip-tease ontológico. Rasgar o véu de Maia continuará a ser durante muito tempo uma impossibilidade metafísica.

É curiosa a coincidência dos detratores e dos partidários da verdade nua a justificarem a sua postura apelando igualmente para a decência. Numa carta de 1485, Pico della Mirândola coloca ironicamente na boca de um suposto aristotélico a seguinte pergunta: “Pode uma jovem honrada pintar o rosto com maquiagens?” Deve o filósofo agir como um retórico cuja arte mágica consiste em “dar a cada coisa um rosto diferente daquele que realmente tem, conceder ao falso a aparência do verdadeiro e enganar os seus ouvintes com poetizações fazendo-as passar por realidades”? Della Mirândola registra assim a moderna suspeita contra a linguagem. Todo o racionalismo se apresenta com a austeridade do vulgar, sem as particularidades da cosmética, como matéria certa, acessível, transparente, simples. No primeiro ensaio de Bacon lê-se: “a verdade é uma luz diurna, nua e aberta, que não mostra as máscaras e os disfarces e as pompas do mundo apenas a meio, enganadora e requintadamente, como os candelabros”19. Objetividade significa agora publicidade, propriedade pública; investigar é desmascarar as astúcias da ocultação.

No início das suas Confissões, Rousseau declara pretender apresentar-se perante os seus iguais como um homem na naturalidade da sua verdade, com o interior à mostra, como perante o juízo final. A nudez do hipotético final da história corresponde à suposta nudez do seu início. Conceber a roupa como disfarce que deve ser eliminado ou deve transparecer é o princípio de um processo de desindividualização. As vestes são sinal certo de egoísmo. A solidariedade só se dá na nudez. É curioso que este discurso da “verdade nua”, utilizado na modernidade contra a uniformidade da nobreza e do clero, fosse por sua vez repetível contra a nova classe triunfante, que se julgava nua e queria despir outros. O Manifesto Comunista acusou a burguesia de não ter deixado entre os homens outro vínculo além do lucro nu, o implacável bare Zahlung (o pronto pagamento ou “puro”), de “ter despido da sua sagrada aparência todas as atividades até agora consideradas honradas e com piedoso recato. Transformou o médico, o jurista, o padre, o poeta, o homem de ciência em assalariados”20. Rousseau acreditara que o homem verdadeiro e natural viria à luz do dia assim que se rasgassem os envoltórios de um ser socialmente mascarado; Marx descobre que a única coisa que fica depois desse despir-se são a mercadoria e o lucro, ou seja, outro envoltório funcional do homem, que também tem de ser tirado para que apareça o homem verdadeiro. Toda a modernidade parece estar à espera de que um fato nu atravesse por fim as brumas da nossa cultura.

19.

The Works of Francis Bacon, Stutgard: Frommann, 1963, VI, p. 377.

20.

Marx-Engels Werke, Berlim: Dietz, 1972, IV, pp. 464-465.

Terá fim este processo de des-cobrimento? Poder-se-á pensar numa identidade que não dispare a frenética corrida para a nudez inacessível? E se a dialética “capas que mascaram / núcleo que luta para sair” fosse tão falsa como a concepção empirista da substância, ao jeito da cebola? Uma superfície espessa ou um núcleo manifesto seriam conceitos — metáforas, se se quiser — mais adequados para evitar essa ridícula medição da decência em função do que pode ser mostrado ou não. Da mesma forma que há pornografias muito recatadas e decências muito obscenas, assim existem também mostras insignificantes e ocultações eloqüentes.

A naturalidade total é artificialidade dissimulada, algo que se observa quando se verifica o adestramento requintado das formas de vida mais naturais — refeições naturalmente sofisticadas ou fugas para a natureza espontaneamente apetrechadas — nos nus da arte, ou numa revista pornográfica, cuja naturalidade é o resultado de focos e brilhos, ginástica, poses cuidadosamente estudadas e contratos milionários (não há desvendamento natural sem economia artificial prévia). Os mentores da “verdade nua” parecem esquecer que utilizam uma tautologia, não fosse a metáfora sugerir a associação — bastante retórica, aliás — de veste e revestimento ou disfarce, em relação aos quais a nudez se distingue como descoberta de um engano, duma mascarada, como desvendamento impudico, como ruptura de um mistério. A verdade pode ter a sua “cultura” na sua veste, como o homem, esse ser vestido, que não se dá a conhecer na sua “naturalidade”.

O trato humano seria tão insuportável num império da mentira como sem o dissimulo, a insinuação e as meias verdades. Igualmente, a verdade não é só do gênero daquilo que se sentencia. E a maior parte do que dizemos não se insere nas rubricas do objetivo e do verdadeiro. A dicotomia do verdadeiro e do falso é existencialmente inexata. Um ato humano não está perfeitamente situado quando se diz dele que ou está na verdade ou está na falsidade; a nossa complicação mental, os milhares de matizes da susceptibilidade, do coquetismo e da ambivalência desafiam a alternativa polar do erro e da verdade. O próprio conceito de verdade total é um ideal artificial cujo reino se limita à oratória dos tribunais ou aos seminários de lógica.

Quando falamos, comunicamos marcos afetivos particulares, selecionamos e omitimos, falamos do que poderia ser. Falar é refutar o inexoravelmente empírico do mundo. Apenas uma pequena parte do discurso humano pode reclamar a veracidade pura e simples ou o puro conteúdo informativo. Uma enorme percentagem da língua é enclausuramento e obscuridade deliberada, e é governada por uma vontade inercial tão antiga que a nossa consciência deixou de a ter presente. A faculdade lingüística de dissimular, deixar na ambigüidade, conjecturar, inventar, não é exclusiva das camuflagens grosseiras ou das instituições poéticas; a Filosofia pode fazer uso dela com a mesma legitimidade. Sem insinuações ou silêncios seria muito difícil exprimir esse mundo de enredos em que vivemos e por cuja simplificação sempre pagamos um preço demasiado elevado. A cultura começa quando se tem qualquer coisa para ocultar.

Uma palavra converte-se em termo de uma ciência quando possui um significado fixo, constante. Nos enunciados científicos os termos devem ser tão perfeitamente diferenciados como os seus domínios objetivos. Enquanto que a Ciência se empenha desde o princípio em desenvolver uma terminologia que evite a equivocidade, a Filosofia procura fazê-la digerível; move-se entre uma margem de riqueza significativa ladeada pelo mal-entendido total a exatidão insignificante. Mas na Filosofia não é possível acabar completamente com toda a ambigüidade. A Filosofia poder-se-ia definir como uma razoável gestão da equivocidade, no meio de equívocos brutos e diálogos precisos de surdos. Se a Filosofia tiver alguma relação com a vida, então insere-se neste jogo de equívocos não goza de qualquer imunidade parlamentar.

A roupagem é manifestação de indigência, e o verbo de outra: da faticidade. A contingência das nossas denominações ensina-nos também alguma coisa acerca da finitude das nossas formas de enfrentarmos a realidade. Não é possível falar em geral sem escolher uma língua concreta com todas as suas particularidades, a história dos seus vocábulos, as ressonâncias das suas expressões aparentemente mais exatas. Nas palavras, os ecos multiplicam-se. Todo o ato de fala pressupõe uma submissão ao campo de forças e de sugestões em que as palavras gastam a sua complexa vida. Esses oceanos da vida pessoal em que somos “os primeiros a ter irrompido”, não são de modo nenhum os do silêncio; neles ecoa “a algaravia dos lugares-comuns”21.

Quando utilizamos uma palavra despertamos a ressonância de toda a sua história anterior, pomo-nos nas mãos daquilo a que Merleau-Ponty chamava les hasards du langage. Nenhum dicionário poderia ser suficientemente amplo para incluí-los, nenhuma gramática poderia formalizar os seus mecanismos associativos. Quem fala renuncia a dizer tudo e aceita o risco de ser mal-entendido. Lamentar esta condição finita do dito é ignorar o privilégio de que se goza: dizer mais alguma coisa do que se diz, realizar o milagre de uns sons serem registrados por alguém como algo que tem um significado.

A descoberta da história no meio do Iluminismo — do relativo das mentalidades (consciência histórica) ou dos gostos (consciência estética) — é a descoberta da ilusão da “verdade nua” ou da nudez como ilusão, o conseqüente abandono da metáfora ou a sua persistência inercial nas filosofias do desmascaramento e a suspeita (igualmente puristas como as suas predecessoras). Quando a nudez deixa de ser uma descoberta festejada as vestes um acrescento prescindível ou um aditamento imaginativo, a linguagem pode constituir-se novamente como sendo a forma própria, plural e finita, de manifestação da verdade. No dia 1º de Agosto de 1835, Kierkegaard falava no seu diário de “uma verdade fria e nua que está diante de mim, mas com a qual não posso viver, como aquele que tivesse uma casa mas ninguém com quem partilhá-la”22. A metáfora da nudez pressupõe uma relação de voyeurisme, converte uma pessoa em expectador, quando desejaria mais ser um amante, um proprietário possuído. A nudez não é a última coisa; está ainda o movimento interior da verdade, ser reconfortado por ela, habitá-la. A velha familiaridade semântica entre o conhecer e a relação sexual mostra a pobreza de um conceito tangencial de verdade para expectadores e viajantes de passagem. Amar e conhecer são igualmente formas de viver e não ocupações ocasionais, são hábitos acomodados na fala de gestos palavras, dispostos para a luz e para a penumbra.

21.

G. Steiner, Después de Babel, México: FCE, 1975, p. 204.

22.

Cf. Diario 1834-1839, C. Fabro (ed.), Morcelliana: Brescia, 1980, II, n° 55.

A experiência da pobreza da linguagem, comum a místicos analíticos, também pode ser entendida como uma riqueza, cujo ganho consiste em também podermos dizer mais do que dizemos, que a última palavra possa ser a primeira de uma explosão significativa que felizmente nos foge das mãos. Talvez a maior mentira humana seja a expressão “e mais nada”. Para dizê-lo com palavras que ouvi dizer a Manuel Fontán: nada existe que seja “meramente”..., isto é: puramente.

O paradigma da mais-valia lingüística é a metáfora. A parábola ou a metáfora mostra o indizível enquanto indizível na sua radical singularidade. Recorrer a elas para mostrar o sentido é mais apropriado que o discurso científico, no qual os objetos aparecem de forma conceitual segundo o regulado e repetível. Novalis sentenciou assim a única saída digna para o relativo fracasso cognitivo: “Quando o caráter de um dado problema é irresolúvel, resolvemo-lo na medida em que representamos a sua irresolubilidade”23. E Wittgenstein: “Quando não se pode desenrolar um novelo, o mais sensato é cair-se na conta de que não se pode; e o mais honesto, admiti-lo”24. Friedrich Schlegel intuiu muito bem a liberalidade do discurso filosófico aberto ao considerar a inatingibilidade do absoluto como algo que nos mantém afastados do dogmatismo25. A pluralidade não depende da inexistência do absoluto, mas sim da sua inacessibilidade total, que os exultantes da particularidade parecem ter esquecido. Wittgenstein tomava nota desta finitude numa chave física:

“É uma necessidade corporal do homem dizer quando trabalha: ‘deixemos isso para lá’, e o fato de se ter de pensar sempre contra esta necessidade quando se faz Filosofia é o que torna este trabalho tão difícil. Deves aceitar as falhas do teu próprio estilo como as fealdades do teu próprio rosto”26.

23.

Schriften, R. Samuel (ed.), Stutgard: Kohlhammer, 1960, III, p. 376.

24.

Werkausgabe, Frankfurt: Suhrkamp, 1982, 8, p. 556.

25.

Cf. Kritische Ausgabe, E. Behler (ed.), Paderborn: Schöningh, 1958, XII, p. 93.

26.

Werkausgabe, 8, p. 557.

Fazer Filosofia protestando por dispor duma linguagem equívoca e impotente pressupõe entender que o pensamento é algo anterior à sua plasmação verbal, que nós já sabemos o que temos que dizer e os outros é que não entendem. Deste ponto de vista, não se deveria falar de uma realidade lingüística da Filosofia, mas sim de uma luta da Filosofia contra a resistência que a linguagem lhe contrapõe. A linguagem seria algo assim como um simples verter o que já está completo no interior, descarregando o peso do pensamento. A visão meramente instrumental da linguagem é o álibi duma incapacidade para o conceito, não só uma acidental incompetência comunicativa. O mal dito foi mal pensado, o feio não é verdadeiro. Aos pensadores que tropeçam sistematicamente na linguagem dever-se-ia recomendar que pensassem melhor, isto é, que utilizassem melhor a linguagem. Porque a língua não transmite um conteúdo pré-existente, como um cabo conduz as mensagens. A experiência só adquire uma ordem na matriz da linguagem. A verdade é têxtil, textura, tessitura, precisamente aquela têmpera que as belas artes proporcionam. É têmpera e humor; por isso há filosofias de muita ou pouca moral, humorísticas e melancólicas, sóbrias e barrocas, de pormenor minucioso e de panorama geral, da pele para dentro e da pele para fora, polêmicas e cautelosas.

Nietzsche tinha razão quando afirmava que melhorar o estilo significa melhorar os pensamentos27. Mas acrescentou um “e mais nada!” que pode ser interpretado como uma proibição de passar a uma região misteriosa. Melhorar o estilo significa, então, permanecer à superfície e ignorar o fundo que a decoração tenta mascarar. Deste modo, Nietzsche corre o pano e dá a entender que há qualquer coisa que convém esconder, mantém o esquema forma-conteúdo e desaproveita a ocasião para questionar precisamente esse dualismo. Continua a pensar que o desmascaramento é o único modo como a verdade se dá. Perde-se a grande oportunidade de encerrar uma alternativa que não corresponde ao nosso modo de conhecer e falar. Nunca estamos perante a escolha entre uma cosmética enganosa e um núcleo nu. O modo de dizer é consubstancial ao modo de conhecer, não podemos saber mais do que dizemos nem melhor de como dizemos.

27.

Cf. Nachgelassene Fragmente, Verão de 1883, KSA, 10, p. 398.

No princípio era a palavra. Talvez as coisas deixem de ser assim no fim, quando reinar o silêncio do desespero ou o olhar feliz. Após a exposição universal nada ficará por dizer, porque o fingimento será impossível, se não houver estranheza e opacidade que perdure. Mas no entretanto também é a palavra; melhor dizendo: são as palavras.

2. A polícia da palavra

A Filosofia é uma questão de estilo, um conjunto de modos de falar. Esta afirmação pode, por sua vez, ser entendida como outro modo de falar, uma ocorrência com intenção desmistificadora; tratando-se de algo supostamente sério, a retórica ou o estilo parecem processos indignos ou sintomas de fraqueza. A Filosofia diz-se não pode entreter-se em questões formais, pois tem obrigações argumentativas. Mas o que é um argumento? Nunca se agradecerá suficientemente essa ambigüidade do termo “argumento”, que tanto significa raciocínio lógico como estrutura narrativa. Agora dá-se o caso de tanto a lógica como o teatro e o romance disputarem uma mesma palavra. Ou talvez não haja melhor lógica que a teatral.

Se se deve considerar como arte, a Filosofia não deita mão a recursos literários como quem pede ajuda a outrem; ela própria é uma distribuidora de argumentos. A expressão lingüística é essencial ao enunciado filosófico, não só porque o conteúdo proposicional não é separável da forma lingüística, como também porque a própria forma literária exprime muitas coisas, é já um gesto de que se não pode prescindir. Na escolha do tom para dizer algo é posto em jogo o sentido do que se diz. Determinados argumentos exigem modos correspondentes, na medida em que se quiser lançar uma idéia para ver o que acontece, proferir um impropério, conquistar alguma segurança, expressar uma reserva, suscitar uma discussão ou competir em sentido de humor. Esses estados de espírito cristalizam em modos de dizer que transbordam a uniformidade dos ideais metodológicos próprios de outro tempo mais obcecado pela clareza.

A república filosófica é, felizmente, habitada por teorias, ensaios, diálogos, aforismos, discursos, cartas, diatribes, comentários, disputas, meditações, lições, tratados... Em contraste com a estreiteza escolar que a palavra “Escolástica” evoca, aquele momento da história da razão ocidental foi povoado por uma impressionante variedade de formas literárias: sumas, reportationes, ordinationes, florilégios, distinções, artigos, glosas, collationes, quaestiones, tentativae, resumptiones... Para todos os estilos há um lugar quando a pluralidade não é considerada o resultado de uma cosmética enganosa, mas sim um reflexo adequado da variedade de acessos ao real.

Há determinadas expressões que refletem o mal-estar que sente quem não sabe bem a que obedecer perante esta enorme variedade. Multiplicar os registros não é cômodo para os que confundem o rigor intelectual com a frigidez expressiva. Dizer de alguma coisa que é uma façon de parler, mera retórica, pura convenção, é por sua vez uma forma de falar que mostra desdém e desinteresse. Muitos paradoxos escondem-se sob uma expressão retórica com fins anti-retóricos. Mais à frente vamos ter a oportunidade de indicar algumas. Gostaria, para começar, de chamar a atenção, com Adorno, sobre a tendencial uniformidade da lucidez perfeita, em contraste com a diversidade que se nos apresenta assim que atentamos à textura. “Na alergia face às formas como meros acidentes, o espírito cientificista aproxima-se grosseiramente do dogmático”28. A pluralidade das formas equivale à sua relatividade. Por isso o desprezo dos estilos filosóficos é indício de alergia à pluralidade de modos como a verdade se nos oferece. A velha suspeita contra a eloqüência pode ser considerada como sinal seguro de falta de razão. Da consideração do convincente como duvidoso há apenas um passo para a preferência pelo inverossímil, por esse prestígio sinistro de que goza a rudeza expressiva entre os cruzados do realismo puro e duro.

28.

Der Essay als Form, Gesammelte Schriften, XI, 12.

À indistinção entre a forma e conteúdo, ao seu entrelaçamento textual, à sua musicalidade, a tudo isto se deve que na Filosofia, como nas Artes, os meios justifiquem o fim. A verdade não é transportada por uma espécie de gentil veículo lingüístico; a verdade é a elegância do próprio movimento e não se dá à margem do jogo das suas variações. A Filosofia não é a passagem da opinião ao saber, mas sim de uma opinião a outra mais bem fundada, não é a passagem da obscuridade para a epifania, mas sim a orientação no meio da penumbra, o roubo de um pouco de claridade, a aquisição de melhores argumentos, a descrição mais precisa de problemas que tinham sido grosseiramente formulados: o melhoramento do estilo e o cultivo da retórica.

O Iluminismo abusou da metáfora da iluminação ao ponto de todo o reino dos matizes ter ficado ofuscado e se ter tornado indiscernível. Já que estamos com metáforas, a centelha e o engenho da eloqüência renascentista são para mim mais clarificadores porque oferecem luz sem a lançarem contra ninguém. Às vezes dá a sensação de que a Filosofia, no momento presente, não tem outro padrão para se medir senão o pensamento do Iluminismo. As razões a favor e contra dividem os filósofos que, quer se considerem na continuidade quer em aberta ruptura com o projeto iluminista, lhe conferem, de um ou outro modo, a honra de ostentar o protagonismo nas atuais discussões filosóficas. E já que procuramos pontos de referência na história, penso que o humanismo renascentista pôs em jogo algumas idéias que depois seriam uma chave para a construção do mundo moderno e que mereceriam maior consideração. Muitas das suas intuições podem iluminar a nossa encruzilhada, presidida pela desconfiança face ao racionalismo mas sem ter de perder a razão.

Para o Renascimento, ornatus não é um embelezamento extrínseco, mas sim um meio essencial para tomar visível o real; a retórica era a sabedoria mais alta, anterior à gramática e à lógica, e o estilo a forma de tornar presente a própria singularidade num contexto de compreensão intersubjetiva. Erasmo falava, por exemplo,

“dos que se apressam a conhecer as coisas, descuidam o asseio e a polidez das palavras, metem-se por um atalho perigoso e sofrem grandes aflições. Dado que só se pode conhecer as coisas pelos sinais das vozes, aquele que desconhece a eficácia da linguagem anda sempre às cegas no conhecimento das coisas e é lógico que tenha alucinações e delírios. Aviso-te de que verás mais com os que cavilam sobre palavrinhas, do que com aqueles que, com jactância, apregoam não se preocuparem com as palavras e irem diretamente às coisas”29.

Para os humanistas do Renascimento a gramática não era o artifício deduzido de umas regras, mas sim o emprego real que delas faziam os melhores escritores, isto é, os usos da coletividade afinados pelas descobertas pessoais; o ingenium precede a ratio em ordem à compreensão da realidade. Esta perspectiva será posta de lado pelo racionalismo até os românticos do século XIX voltarem a sintonizar com uma lógica da invenção, da novidade gerada em liberdade e do artifício belo.

A suposição racionalista de uma evidência da verdade e do bem mal deixava espaço para a retórica enquanto teoria e práxis destinada a iluminar e influir no comportamento nas condições de incerteza e indecisão. Kant considera que a retórica não é digna de respeito, pois serve-se das fraquezas humanas para a sua intenção30. E se o que ela realmente fizesse fosse servir as fraquezas humanas? O princípio fundamental de toda a retórica é o princípio da razão suficiente. Este princípio não incita a renunciar ao fundamento, como se a opinião fosse o não fundamentado ou não fundamentável. Convida a não procurar encontrá-lo fora da dicção, numa região arcana que ainda ficasse resguardada da contaminação do verbo e da cultura. Aprofundar é explorar melhor a superfície. Esta operação, em Filosofia, equivale a procurar uma expressão mais convincente, um argumento melhor.

29.

Plan de Estudios, em Obras Escogidas, Madrid: Aguilar, 1964, p. 445.

30.

Cf. Kritik der Urteilskraft, § 53.

Um antigo preconceito filosófico leva a olhar com desconfiança para o que se entende e convence. Os sofistas tiveram êxito ao apoderarem-se do monopólio do discurso público, abandonado pelos especialistas do enigmático. O combate contra a sofistica saldou-se com uma distribuição trágica do território, ainda vigente em muitos aspectos da nossa cultura: os demagogos ficaram com o espaço do entretenimento, com o interessante e divertido, com o humor e a ironia, com o discurso apaixonado; os filósofos ficaram com as palavras sérias, com o esotérico e o aborrecido, no reservado da sua própria gíria. Daí o obtuso ter gozado de um prestígio estranho, como se o ser-se incompreendido fosse sempre uma garantia de se ter razão (e não antes um indício exatamente do contrário).

A antítese de verdade e influência — de que Platão se serve para criticar os sofistas — arrasta consigo também a justificação da retórica como tal. Não é lícita a retórica se verdade e influência se excluírem mutuamente. Mas é uma contraposição superficial, pois a influência retórica não é a opção alternativa a um conhecimento que também se poderia ter, mas sim a uma evidência que não se pode ter, ou ainda não, ou não aqui e agora31. Perante esta dificuldade, surge a iniludível retórica. Da necessidade de não se poder dizer tudo surge a virtude de se falar convincentemente. Se soubéssemos tudo, provavelmente não teríamos feito as duas melhores descobertas do discurso humano: a brevidade e a elegância.

31.

Cf. Hans Blumenberg, Wirklichkeiten in denen wir leben, Stutgard: Reclam, 1981 pp. 111-112.

Para perceber o que significa o fato de a Filosofia ser uma retórica — melhor ainda: várias retóricas — pode ser útil uma breve aproximação antropológica à retórica. Pois o que os filósofos fazem não é qualquer coisa completamente diferente daquilo que os homens são, do que lhes interessa ou preocupa. E o recurso à retórica é tão iniludível para o condutor de gado como para o orador de massas; é uma questão quantitativa o que distingue os rodeios aparentemente inexistentes numa ordem e a indecisão que precede uma declaração de amor.

O homem não tem disposições específicas para se comportar de forma reativa, imediata, face à realidade. Esta pobreza instintiva conduz à pergunta sobre como um ser assim pode sobreviver apesar da sua indisposição biológica. Poder-se-ia formular a resposta da seguinte forma: na medida em que não se integra ou se incrusta diretamente nessa realidade. O homem é um animal que anda sempre com rodeios perante a realidade. A relação humana com a realidade é indireta, circunstancial, hesitante, seletiva, retórica, “metafórica”, como Blumenberg a denomina. Todo o comportamento humano é retórico, tal como a sua condição num mundo que não se lhe impõe inocentemente. A retórica é uma arte porque é paradigma das dificuldades nas relações com a realidade. A Filosofia é a expressão mais sofisticada desse rodeio metafórico feito pelo homem, esse animal simbólico, inclusivamente nas suas respostas mais rudimentares. As nossas relações estão cheias de eufemismos, sedução e coquetismo, sem que a autêntica conduta consista em suprimir esses acréscimos como se fossem um véu enganoso que ocultasse um fundo real.

O problema da artificialidade seria muito fácil de resolver arrancando todo o artifício, mas por baixo não encontraríamos senão a animalidade ou a estupidez. A autenticidade pertence à ordem da cultura, a um artifício que não o parece. O mesmo acontece com as expressões filosóficas. Não se tem acesso à verdade despindo o que quer que seja, mas sim vestindo adequadamente; é uma questão de gosto, certamente, mas sobre gostos há muita coisa escrita e, sobretudo, uma malha de valorizações e juízos públicos que o constituem intersubjetivamente. A construção retórica da verdade é um processo público que sanciona a opinião e a relativiza ao mesmo tempo. O contrário da barbárie é a gramática; a república humana é uma república de palavras, não de coisas; o rito é a civilização da brutalidade.

Que a retórica é iniludível é algo que se vê no fato de a rejeição da retórica também ser retórica. O diálogo platônico não se entrega menos à retórica que a doutrina dos sofistas contra a qual se dirigia. É como se a Filosofia tivesse uma espécie de “ponto cego” (Derrida) em relação à sua própria metafórica, uma inadvertência em relação aos pressupostos inconscientes que se escondem sob o vocabulário que recebeu e do qual faz um uso ingênuo. O que acontece é que numa realidade cultural artificial — numa civilização avançada, como já era a Atenas de Sócrates, em que as coisas se tinham complicado bastante — se nota tão pouco a retórica precisamente porque está presente em toda a parte. A clássica figura anti-retórica Res non verba! remete para um estado de coisas que já não trazem a sanção do natural, trazem a pintura retórica. Ad res! é uma incitação a agir e não uma indicação de fatos. É retórica sugerir a outros uma mudança de perspectiva para abandonar um suposto verbalismo vazio.

Se a realidade fosse alguma coisa em relação à qual nos devêssemos comportar “de forma realista”, ficaria sem explicação o fato de haver quem não o faça. Seria suspeita a diversidade de atitudes que comparecem sem consciência de engano num mesmo palco. Não haveria maneira de discernir a aprendizagem do fingimento, nem a elegância da presunção, pois todo o gesto seria artificioso. Mas é que além disso o realismo estereotipado converte-se num crescente catálogo de proibições de artificialidade. Pense-se na obsessão rousseauniana de mergulhar num fundo de natureza sem cultura onde se encontrasse a autenticidade sem cosmética, ou no naturalismo dos procuradores do bom selvagem, em atitude tão suspeitosamente semelhante à de quem, no princípio do nosso século, abandonava a rotina da sociedade burguesa e se dirigia todo contente para a naturalidade da guerra.

A atitude de retour au réel polariza a atenção sobre uma realidade supostamente crescente contra a qual haveria que combater. A retórica do realismo precisa de conjurar umas conspirações que explicariam o seu escasso êxito até agora. A história platônica da caverna onde os presos não conhecem a verdadeira realidade mas sim o jogo das sombras na parede, enquanto não forem violentamente arrancados da sua situação é o modelo desses desmascaramentos. Vai contra a retórica (pois os maquinadores do mundo das sombras são os sofistas, enquanto construtores de imagens), mas é, em si mesma, retórica, pois apóia-se na metáfora do “alcançar a luz” e constitui-se como alegoria de uma realidade absoluta cuja promessa de evidência não pode satisfazer. A passagem filosófica das sombras para a realidade foi usurpada pela retórica. Jean Paul traduziu isto ironicamente ao exclamar: “Somos apenas umas sombras que tremem! Como é que uma sombra quer desgarrar a outra?”

Que significa então para a Filosofia ter um estilo? Não significa uma renúncia a apoderar-se da realidade, mas sim a pretensão de que ao fazê-lo não compareça de nenhum modo a sua subjetividade. O estilo é a forma individual como um autor exprime verbalmente a sua própria visão do mundo, esse “compasso escondido” de que falava Schopenhauer. O estilo não contraria as regras da sintaxe, mas também não se deduz delas. Não é o que impede o realismo, mas sim o modo como comparece. Por isso não há um estilo realista. Se existisse, estaríamos perante mais uma escola e não dentro de um quadro de atenção diversificada à realidade.

Convém recordar estes e outros traços da condição humana, porque não foram poucos os escamoteadores da nossa finitude e dos nossos modos de conhecimento e expressão. O ideal que se manteve vivo desde Descartes até Husserl — a transparência do sujeito autoconsciente como garante da inteligibilidade dos enunciados filosóficos — era insensível às ambigüidades da palavra, não sentira a incapacidade da linguagem para prender no seu seio a fugacidade do real. Este receio perante a ambigüidade sobreviveu ao esgotamento das filosofias da subjetividade; perspectivas aparentemente contrárias participam do mesmo sonho de perfeição expressiva, agora ao alcance de um anonimato estrutural. A clareza continua a ser o objetivo, mas agora exige a imolação da individualidade. Refiro-me à época que sonhou com aquilo a que Roland Barthes chamava uma écriture sans style. A tradição simbolista (especialmente Mallarmé), a mística heideggeriana do ser, as modas estruturalistas e desconstrutivistas fizeram com que víssemos as coisas como se fosse a linguagem falando. Para evitar o equívoco e despojar a linguagem da sua incômoda imprevisibilidade, atribuiu-se a uma instância impessoal a tarefa de controlar as significações.

O estilo é, ao mesmo tempo, presença do sujeito na palavra e condição de possibilidade do mal entendido. Se só houvesse lógica e gramática, a confusão comunicativa seria episódica ou governável, mas o trivium introduziu a equívoca retórica e o dito cristaliza desde então em ressonâncias não pretendidas. Qualquer pessoa que tenha visto as suas palavras a rolarem por uma encosta alheia sem poder recuperá-las conhece a versão lingüística de Frankenstein. A nenhum falante é estranha a experiência do aprendiz de feiticeiro, que deixa escapar o que ele próprio produzira. Esse grande apaixonado da pluralidade das línguas que foi Wilhelm von Humboldt viu isto muito bem:

“Ninguém pensa com a palavra exatamente a mesma coisa que o outro, e a mais pequena diferença continua a tremer na linguagem, como um círculo na água. Daí que toda a compreensão seja sempre ao mesmo tempo uma não compreensão, toda a consonância em pensamentos e sentimentos também uma dissonância”32.

Schleiermacher di-lo-ia depois de uma forma semelhante: a incompreensão, o mal‑entendido não podem ser completamente dissolvidos33. A objetividade e a plena transparência intersubjetiva só poderiam ser alcançadas desde que a comunicação pudesse ser controlada a partir de um ponto como o de Arquimedes, fora da linguagem e da sua variabilidade histórica. Mas não podemos determinar nem predizer completamente o que irão fazer os outros com o que dissemos e que nem sempre coincide exatamente com o que gostaríamos de ter dito. Sartre expressava isto com uma imagem nada isenta de exagero e dramatismo:

“As palavras vivem da morte dos homens, unem-se através deles; cada frase que formo, o seu sentido foge-me, é-me roubado; todos os dias e todos os falantes alteram para todos os significados, os outros vêm até à minha boca para os mudarem”34.

Toda a comunidade humana é uma institucionalização deste espólio verbal; a contribuição da criatividade é o risco do mal-entendido.

Para benefício de poetas e desconsolo dos gramáticos, não existe uma fala sem sentido, garantida contra a ressonância equívoca. Porque toda a articulação individual é não só re-produtiva, repetição de uma convenção fixa, como também inventiva de uma forma sistematicamente incontrolável. O estilo individual desafia sempre a normalidade lingüística e desloca o que até então eram considerados os seus limites. O sentido é intersubjetivo e por isso eu não posso controlar o uso e a compreensão a que outros submeterão as minhas expressões. A decisão sobre o “verdadeiro sentido” duma expressão tem unicamente o caráter de uma suposição. Estamos apenas a ver continuamente se os outros constroem o mundo comum igual a nós, conforme a composição de lugar que Schleiermacher gostava de fazer35. Toda a interpretação é, em última instância, hipotética. Como a verificação é uma processo sempre aberto, a compreensão toma-se uma tarefa infinita.

32.

Gesammelte Schriften, Berlim: Akademie-Ausgabe, 1906, 1/5, p. 418.

33.

Cf. Hermeneutik und Kritik, Frankfurt: Suhrkamp, 1077, p. 328.

34.

Critique de la raison dialectique, Paris: 1985, I, p. 211.

35.

Cf. Hermeneutik und Kritik, p. 460.

Não precisaríamos de nos pormos a caminho em direção à compreensão intersubjetiva se essa compreensão estivesse garantida ou fosse claramente impossível. Falar é já um desmentido da transparência absoluta e da absoluta incomunicabilidade. Daí a irredutível pluralidade das nossas explorações do mundo, sem as quais não haveria qualquer motivo para nos tentarmos compreender, da mesma forma que seria inútil tentá-lo se a equivocidade fosse insuperável. Mas interessa-me sublinhar agora o aspecto da particularidade que não precisa de superação, num momento em que as teorias comunicativas da verdade e as técnicas do consenso puseram um véu de suspeita sobre a diversidade e o particular.

Uma verdadeira comunidade de comunicação não pode consistir — como parece dar a entender o universalismo abstrato de Habermas ou o de Apel — naquela que exige aos interlocutores que deixem a sua particularidade no vestíbulo. Se a racionalidade e a troca de opiniões exigissem a dissolução dos pontos de vista individuais — a renúncia ao estilo, a suspeita face à pluralidade de estilos — então qualquer participante num discurso racional poderia levá-lo a cabo em forma de monólogo na ausência de todos os outros. É este o universalismo que surge do modelo de uma racionalidade tecnologicamente degenerada. Mas as diferentes visões do mundo não são antecipáveis, e por isso falamos. Só assim o indivíduo pode fazer valer a sua contingência, em vez de se sentir excluído por uma redução à intersubjetividade.

Só se pode amar uma pessoa que seja algo mais do que um caso de uma regra geral. E nesse ser-amado a experiência da contingência traduz-se numa vivência de reconhecimento. Por isso a universalidade tem de ser continuamente corrigida pela unicidade, imprevisibilidade e dessemelhança de indivíduos. É a isto que Schleiermacher chamava o universal individual e é isto o estilo. Aquilo a que também designava por dialética é precisamente essa busca cooperativa da verdade que ajuda a uma evidência que escapa à capacidade individual. O fim do diálogo é o saber, mas como algo que não é independente das interpretações individuais. O universal leva o selo de uma irredutível individualidade. A universalidade apriorística que submete o individual transforma-se em compreensão inter-individual. A inter-individualidade substitui a generalidade objetiva. A significação do todo não existe num qualquer lugar fora da consciência dos indivíduos que interiorizam o universal de uma forma que lhes é própria. Não existe um universal não singular.

Vale a pena sublinhar esta concretização particular de todo o universal face ao universalismo abstrato. A transparência racionalista tornava desnecessária a intervenção da vontade na compreensão intersubjetiva. A universalidade genérica teria de substituir a compreensão concreta. Este modelo de discurso sem vontade, sem ethos, não recolhe adequadamente a particularidade; é suspeito de uniformidade e inviável. O discurso não pode produzir as disposições que põem em marcha o próprio discurso.

Entre as condições do falar figura a atenção compreensiva a uns sujeitos concretos e não uma genérica regulamentação universal. Assim o parece ter percebido um autor de origem analítica como Davidson, ao postular um principle of charity como princípio hermenêutico necessário para mitigar os efeitos do inevitável mal-entendido. É algo muito parecido com a bela fórmula de Saussure contra a uniformidade do código e do discurso. O que dizemos vive à la merci de lendemain, nada garante a sua estabilidade36. Não há nada que garanta a manutenção da sua regularidade; é precária, precisamente por não ser imperativa. Sem esse contexto de benevolência pré-discursiva, fruto de uma particularidade interessada em ter em consideração a opinião alheia, a própria conversa seria impossível ou tornar-se-ia um ameaçador processo de uniformização.

36.

Cf. Cours de linguistique générale, R. Godel (ed.), em Cahiers Ferdinand de Saussure 15 (1957), p. 72.

Na modernidade, as representações que os homens têm do mundo privatizaram-se de tal forma que a hermenêutica — a arte da compreensão, a Filosofia como Arte — se vê obrigada a intervir para estabelecer um entendimento entre sujeitos individuais que já não podem ter a certeza de viver no mesmo mundo. Só a Arte está em condições de lançar pontes entre subjetividades que habitam um mundo fragmentado. As tradições romântica e hermenêutica comparavam expressamente a interpretação com uma arte, com uma tarefa de gênio, devido ao fato de as regras gramaticais não virem acompanhadas da sua aplicação, não poderem ser aplicadas mecanicamente. No vocábulo mais inexpressivo há um mínimo de originalidade imprevisível. A Arte é uma produção cujas regras nós conhecemos, mas a sua aplicação não pode ser novamente resolvida por meio de regras, o que leva a um regresso ao infinito. É claro que por vezes é possível, posteriormente — após uma repetição controlada —, indicar as regras de um estilo. Mas então já deixou de ser um acontecimento individual e converteu-se em maneira, em algo afetado. E o amaneirado não merece o qualificativo de mera retórica, mas sim o de má retórica. Não é possível deixar de ter estilo; o que cabe é tê-lo mau ou estragá-lo.

A Arte — neste caso, a unidade de expressão e conteúdo — converte-se assim em herdeira e administradora póstuma duma metafísica cuja radicalidade era devida à ignorância da variação cultural e histórica. Face ao veredicto de Hegel, segundo o qual a Filosofia é uma expressão mais elevada que a Arte, está a intuição romântica de que o mais importante só pode ser contado. A exaltação da Filosofia equivale à sua transformação numa poética. Vico, Montaigne, Shaftesbury, Gracián, Erasmo, Herder foram alguns dos felizes inventores desta mudança de paradigma. A Filosofia da cultura constitui-se como Filosofia primeira, com a peculiaridade de que o seu primado não é uma espécie de perenidade do incontaminado, mas sim em atentar à lógica da variação. Também a questão sobre qual é o saber mais elevado deveria ser colocada sem preconceitos hierárquicos, deixando à margem as solenidades de grau e categoria, para simplesmente se interrogar donde se compreende melhor a realidade.

III. A RAZÃO DISCURSIVA

Que tempos são estes
em que uma conversa é quase um delito,
porque estamos rodeados
de tantas coisas ditas?

PAUL CELAN, Schneepart

1. A arte da controvérsia

Conta-se que uma vez alguém foi visitar o famoso físico dinamarquês Niels Bohr à sua casa de montanha. O visitante não conseguiu dissimular o seu espanto quando viu uma ferradura no dintel da porta principal.

— O senhor, como cientista, não acredita que as ferraduras dão sorte, pois não?

Ao que o físico respondeu:

— É claro que não acredito. Mas garantiram-me que as ferraduras dão sorte mesmo quando não se acredita nelas.

Numa sociedade em que o prestígio das ciências naturais, a sua exatidão verificável e a sua eficácia creditada são inquestionáveis, a atitude geral em relação às ciências do espírito ou humanidades entre as quais cabe referir a Filosofia é uma espécie de tolerância negativa. Não se acredita realmente nelas, mas respeita-se a sua presença nas instituições culturais e educativas como uma detração pouco séria, mas de qualquer modo inofensiva, a que se concede licença de circulação no campo teórico das idéias, mas desde que não incomode muito o nosso presente. De qualquer forma, não vale a pena discutir muito acerca da sua legitimidade e seria muito arriscado excluí-las por princípio, pois talvez um dia venhamos a precisar delas.

É minha intenção falar aqui da periculosidade da Filosofia, do seu poder e da sua natureza essencialmente polêmica e controversa. É que o respeito que lhe tributam costuma vir acompanhado da sua neutralização objetiva. Como com a ferradura em que não se acredita, tem à sua espera um destino cruel: vir a ser adorno e acessório, nem tão importante que se lhe preste muita atenção, nem tão maléfica que valha a pena o esforço de tirá-la. Algo assim acontece quando se considera interessante saber um pouco de Filosofia, quando se fala dela como se ela fosse um conjunto de crenças subjetivas que toda a gente tem mas que ninguém estará disposto a fazer vingar. O inimigo desarmado pode suscitar até alguma simpatia.

Este tratado de paz com a Filosofia é o produto da sua prévia desnaturalização. Desde o julgamento de Sócrates que sabemos que a Filosofia mantém uma relação tensa com a realidade. E na França do séc. XVIII les philosophes eram vistos, e com razão, como inimigos do antigo regime e propagadores da revolução. Hoje em dia a hostilidade é menos evidente, mas isso não quer dizer que devamos ficar contentes. Talvez a perseguição tenha sido substituída pela falta de compreensão da sua linguagem ou por uma sutil transformação da Filosofia em inocente conjunto de opiniões privadas.

O poder da Filosofia consiste numa suspeita corporativa em relação aos fatos, que umas vezes adota a forma de desconfiança face ao meramente dado e outras dá origem a uma irada rebeldia. Em nenhum dos casos o fato deixa de ser “uma bela e insidiosa palavra”, segundo a acertada definição de Heidegger, porque os fatos não têm a razão do seu lado, apesar de terem a assistência de maiorias triunfantes e milhares de vezes avalizados por costumes históricos. Devemos à Filosofia — a essa impenitente desconfiança perante os fatos — a manutenção duma obstinação contra o fático, debaixo da qual se esconde sempre uma forma de pertinaz sensatez. A Filosofia é rebeldia quando não se resigna a ser mera expressão do seu tempo, quando prefere ser evocação a ser reflexo e goza mais da vizinhança da Literatura que da companhia fatal das ciências exatas.

Se a Filosofia nos permite manter intacta a diferença entre o que é e o que deve ser, isso deve-se ao fato da sua missão ser a afirmação rebelde e obstinada do conceito de liberdade e de dignidade como realidade incondicional que faça frente a todas as tentativas de superação psicológica ou domesticação funcional. As ciências positivas e a práxis que nelas se apóia — o direito administrativo, o controle da ordem social, o rendimento instrumental... — tendem inevitavelmente a tratar a realidade do ponto de vista da sua possível funcionalidade. A resistência da Filosofia à consideração relativizante das coisas e à transformação do real num conjunto de fatos é, pelo contrário, afirmação utópica do absoluto, das imagens proibidas da liberdade, do dever que não se reduz ao ser, da convicção que não trai a sua incondicionalidade.

Na Europa moderna, as reflexões acerca e da liberdade foram, quase sempre, respostas a uma ameaça; geralmente tratava-se mais de uma obstinação prática que duma estrita demonstração lógica. Uma presunção a seu favor deu alento à sua defesa face ao determinismo universal anunciado pela ciência natural moderna, à rebeldia política face aos estados construídos sobre princípios mecanicistas e à afirmação da personalidade contra a proclamação resignada dos determinismos históricos, psicológicos e sociais. Neste sentido deve entender-se a consideração que Schelling fazia do dogmatismo isto é, da submissão do homem ao mundo objetivo como uma derrota voluntária, ou a idéia de Fichte de que o mal radical é a preguiça, a renúncia à ação. Mesmo quando estes combates nem sempre se saldaram numa vitória sobre o atacante, a própria resistência a aceitar inquestionadamente o seu domínio, aquilo a que Hegel chamava “a obstinação absoluta da subjetividade”37 face à pressão do determinismo, é um indício das boas razões em prol da liberdade. Já é uma vitória o fato de a negação teórica ou prática da liberdade não ser aceite como um fato trivial.

37.

Philosophie der Geschichte, Frankfurt: Suhrkamp, 1970, XII, p. 415.

A que se deve esta peculiar insubmissão do pensamento de que faz gala a Filosofia? A anarquia filosófica — digamo-lo diretamente — responde ao seu caráter essencialmente controverso. Que cultivar a Filosofia esconde uma paixão pela liberdade é coisa que se toma patente quando comparamos o discurso filosófico com o discurso científico. As ciências afirmam de forma hipotética, ao passo que são próprias da Filosofia as afirmações apodíticas. É portanto claro que intuições como a da liberdade pessoal estão mais à vontade no âmbito da incondicionalidade pretendida pela Filosofia que no espaço hipotético da Ciência experimental.

Na metodologia científica existe sempre um elemento decisivo. Quem pergunta demasiado por que sai do âmbito dos investigadores, pois a comunidade de cientistas define-se como sendo a comunidade dos que estão unidos por determinados interesses e processos e que renunciaram a questionar continuamente essas decisões. Nas ciências há elementos centrais que não se oferecem à livre discussão, antes permanecem protegidos de toda a controvérsia. Estes supostos somente são questionados em situações extremas de crise. Neste sentido, Heidegger tinha razão quando disse que “a Ciência não pensa”. A Filosofia é, pelo contrário, a tematização sistemática dos pressupostos do discurso e das decisões que o sustêm, a sua perseguição contínua, uma ruptura do silêncio decisivo. Por isso — como afirmou Spaemann — a Filosofia não tem crise de fundamentação: ela é a crise de fundamentação institucionalizada38. Em Filosofia só há precedentes persuasivos.

38.

Cf. Philosophische Essays, Stutgard: Reclam, 1983, pp. 104 ss.

As polêmicas em Filosofia não se detêm perante nada, nem sequer perante o seu próprio conceito. Os “infinitos desacordos da Filosofia” (Rescher) não têm comparação com as desavenças dos cientistas, pois aquela não está submetida a um controlo de eficácia pragmática. É claro que toda a ciência é controversa. A troca de argumentos, razões e críticas pertence aos processos normais do progresso do conhecimento. Esta troca não adotou sempre a forma de um diálogo harmonioso em que os participantes interviessem de forma neutral e desinteressada. Mas nas ciências, este confronto costuma acontecer num quadro teórico comumente aceite. Um acordo acerca do método, um mesmo objeto e também alguns princípios fundamentais garantem a unidade da Ciência. As controvérsias científicas desenvolvem-se dentro de um certo quadro consensual. Quando numa conversa surgem discrepâncias sobre questões técnicas ou científicas, os interlocutores referem-se a algo de muito concreto. Grande parte das diferenças de opinião podem ser resolvidas consultando-se um dicionário, recorrendo ao juízo de um especialista ou apelando ao árbitro imparcial da experiência.

Em Filosofia não há propriamente dicionários, nem especialistas, nem áreas reservadas dentro da ordem dada. Esta mesma ordem da vida, com a sua hierarquia de valores, é um problema para a Filosofia. Ao contrário dos métodos científicos, a Filosofia não é um desenvolvimento progressivo de partes, aponta para uma totalidade. Por isso a anarquia filosófica é por princípio insuperável. E a essa anarquia se deve a impossibilidade de encarar algo assim como que uma divisão do trabalho em Filosofia. Para dizê-lo de outra forma, o organograma da Filosofia parece-se mais com o plantel dum time de “futebol total” do que com uma distribuição de funções ministeriais.

Toda a possível resposta a uma pergunta pressupõe um horizonte não tematizado de evidências que não foram questionadas pela referida pergunta. Esta trégua não é — no caso da Filosofia — nem fixa nem definitiva. Não há um limite estável entre o que se pode dizer e o que não se pode dizer. Isto não é uma tese cética. Até a rejeição de fundamentações últimas necessitaria de ser justificada. O ceticismo é, antes, uma forma de se fugir à controvérsia renunciando à procura da verdade. A Filosofia é o contrário desta resignação.

Spaemann propôs que se definisse a Filosofia como “um discurso continuado acerca das questões últimas”. Estas questões são precisamente as que ficam em aberto no final de um discurso. Isto também é objeto de profetas e políticos. Mas a Filosofia distingue-se por ser um discurso sobre essas questões. O filósofo está interessado na argumentação. Também é verdade que todos os dias se fala sobre esses assuntos (em momentos críticos da existência, numa reunião de amigos, quando já se bebeu uma boa dose de álcool e é de madrugada...). A Filosofia distingue-se destes discursos não pelo seu maior ardor, mas sim pela sua continuidade. Ora bem, a continuidade não significa que as disputas dos filósofos tenham tido há vinte séculos o mesmo objeto. Se alguém tentasse identificar o que é comum neste discurso — fazer Filosofia da História da Filosofia —, esta tentativa não seria mais do que uma contribuição controversa para este discurso.

Há um uso do conhecimento filosófico do passado que tende a creditar a imagem de um material conceitual relativamente estável. Esta apreciação não parece estar em consonância com o caráter controverso da Filosofia. Como apontou Rorty39, o terminus ad quem da História das ciências, enquanto História do progresso, não suscita a polêmica. Mas a disciplinas a que damos o nome de “Filosofia” inclui as respostas mais divergentes às questões mais bizarras, ao ponto de sofrer de uma incapacidade de determinar de comum acordo quais são as questões filosóficas.

Pelo que se refere à Ciência, estabelecer a lista canônica dos sábios que têm autoridade não é um verdadeiro problema. O cientista não precisa de estabelecer uma relação entre os seus trabalhos e as investigações de um sábio do passado para se dar ares de respeitabilidade. Mas em Filosofia — especialmente nas disciplinas de História da Filosofia — estabelecer uma lista canônica de sábios creditados é uma tarefa fundamental, ao ponto de existir algo de parecido com uma categoria honorífica a que se deve dar a devida importância. A História da Filosofia, como qualquer outra, é escrita pelos vencedores. Por isso, como em qualquer iniciação, a História da Filosofia tem algo de enigmático e ritual, quase cerimonial, enquanto acesso ao mundo dos nossos antepassados. Uma imensa mitologia regula e disciplina o culto que prestamos a estes mestres pensadores.

Assumindo o risco de incrementar a polêmica, atrever-me-ia a definir o traço profissional comum aos filósofos como uma paradoxal dependência da controvérsia. Trata-se de uma capacidade de viver com aporias abertas e excedentes de dissentimento.

O vício profissional dos filósofos — o seu déficit crônico de consenso — apresenta-se como uma virtude interdisciplinar ultramoderna: sobretudo a sua capacidade de suportar com coragem os desacordos da conversa40.

39.

Cf. The historiographie of philosophy: four genres, em R. Rorty - J.B.Schneewind - Q. Skinner, Philosophy in History. Essays on the Historiography of Philosophy, Cambridge University Press, 1985, p. 59.

40.

O. Marquard, Apologie des Zufälligen, Stutgard: Reclam, 1986, p. 113.

Por isso Platão comparava a discussão sobre o que significa alguma coisa ser real com uma guerra e falava de “um combate de gigantes pelo ser”. Sem Filosofia também há diferença de opiniões, mas a esta compete-lhe manter a pretensão de resolvê-las racionalmente. E é óbvio que atualmente as discussões filosóficas não são guerras confessionais, nem revolucionárias, mas sim, pelo contrário, guerras civis hermenêuticas. De qualquer forma, o ideal de “estacionar” todos os conflitos é, por sua vez, um fator que agrava o próprio conflito.

Quem esperar da Filosofia a obtenção de um consenso que não exista na vida diária ver-se-á necessariamente decepcionado. Na medida em que a Filosofia se ocupa sistematicamente dos princípios desse consenso possível, fortalece os conflitos. A Filosofia empresta razões ao dissentimento: articula teoricamente um dissentimento radical que de outra forma só conseguiria impor-se por meio de violência. Da perspectiva do sistema, a Filosofia pode ser vista até como um incentivo à violência; e para o ativismo revolucionário, como um fator de estabilização dos estados de fato. Mas não é uma coisa nem outra. É um desacordo produtivo em ordem à verdade, o que a distingue de qualquer forma de arbitrariedade, quer tenha o cunho da ordem pública quer o da subversão.

Um dos inimigos mais perigosos do diálogo filosófico é aquele a que Marquard chamou “o perfeccionismo da compreensão”. Trata-se de uma tentação de grande parte da Filosofia moderna e que culminou nas teorias mais recentes do consenso racional. Acarinha-se a idéia de acabar com as disputas dos filósofos, quer seja através da fundamentação do discurso filosófico sobre uma seqüência de enunciados evidentes (Descartes, Fichte, Husserl), quer seja pela determinação definitiva dos limites entre o que é pertinente e o que não o é (Kant, Comte), quer seja pelo desenvolvimento de um método que permita formalizar os problemas filosóficos de tal forma que cessem as discussões e se imponha o imperativo de calcular, como uma vez sonhou Leibniz.

A experiência do desacordo foi vista em determinados momentos da História da Filosofia como resultado da irracionalidade, sem reparar que se trata antes de um sinal da razão. Por isso Hume se lamentava de as controvérsias sobre questões morais e políticas “poderem ser menos resolvidas com argumentos de advogados e de filósofos que pelas espadas dos soldados”41. E, numa das suas cartas, exprime assim a sua saudade de outros tempos mais pacíficos para a Filosofia:

“Revivamos aqueles felizes tempos em que os epicuristas Ático e Cássio, o acadêmico Cícero e Bruto, o estóico, conseguiam viver todos juntos numa amizade sem reservas e eram insensíveis a todas essas distinções, exceto na medida em que lhes proporcionavam uma matéria sobre a qual estarem de acordo, falar e conversar”42.

A identificação do racional com o axiomático dissipou a idéia de verossimilhança, o que levou a suspeitar da diferença de opiniões, como se não tivesse sentido discutir quando nos encontramos na meia luz própria das questões práticas. Assim, por exemplo, o fato de estes assuntos se apoiarem na opinião e não na argumentação parecia a Bacon um estado de coisas lamentável, pelo que recomendava

“(...) acabar com as disputas, as controvérsias e diferenças de opinião. Há que abandonar tudo o que for ornamento da linguagem, metáfora, recurso de eloqüência e vacuidades do mesmo gênero”43.

41.

Treatise, III, X, 261.

42.

The Letters of David Hume, J. Y. T. Greig (ed.), Oxford, 1932, I, p. 173 (15 de Março de 1753).

43.

F. Bacon, Novum Organum, Londres: ed. Spedding, 1858, IV, p. 52.

A tentativa de reduzir todo o saber a um único método leva igualmente Hobbes a defender que a discussão não pode conduzir de forma nenhuma à unidade de critérios. A expressão de opiniões diferentes é algo de suspeito que leva sempre à disputa e é fonte de conflitos. A aplicação dos métodos da ciência natural analítica promete ultrapassar o plano da mera opinião.

Esta incapacidade de tolerar a irredutível diversidade de opiniões filosóficas ignora toda a riqueza da vida implicada num juízo desta natureza. O culto do consenso — quer seja sua versão cientificista como na sua modalidade lingüístico (Habermas, Apel) — permanece cego perante o rendimento cognitivo da discussão racional, esquece a finitude dos nossos discursos e a intransponível distância entre os acordos de fato e os consensos ideais. A inevitável controvérsia tem por objeto, precisamente, aquilo que deveria ser o conteúdo legítimo do referido consenso. O caráter insuperável da diversidade vai preterindo indefinidamente o acordo universal. Mas isso é uma condição da liberdade, na medida em que desvaloriza como argumento a afirmação de que uma determinada tese conta com o consenso futuro de todos, tem a História do seu lado.

A Filosofia tematiza a sua própria particularidade e a particularidade das perspectivas, ao mesmo tempo que se esforça sistematicamente para as ultrapassar. Por isso, quando Fichte afirmava que o tipo de Filosofia que se faz depende do tipo de homem que se é, não queria propagar uma opção irracional, mas sim tirar as conseqüências da idéia de que a tentativa da razão de se pensar a si mesma não se pode apoiar senão na resolução de um indivíduo contingente. Isto aproxima a Filosofia da experiência da criatividade artística e afasta-a ainda mais das abstrações dos modelos científicos, pois estes ignoram a contingência do concreto.

De fato, a experimentação científica é probatória quando não é uma vivência pessoal, mas sim algo que pode tornar-se evidente a qualquer subjetividade. No ato de repetir uma experimentação antecipa-se um dos seus princípios fundamentais: o sujeito tem de ser intercambiável, não há Ciência privada. A história do sujeito, o seu caráter e estimativas de coragem têm de ser neutralizadas. A Ciência experimental é a renúncia metódica à própria particularidade, ascese de que são incapazes tanto a Arte como a Filosofia. Por isso Schopenhauer dizia que uma associação de filósofos era uma contradictio in adjecto — como um sindicato de eremitas —, pois os filósofos quase nunca estão no mundo no plural, e entendeu a Filosofia como uma aventura privada, pessoal, mais próxima da Arte que da Ciência.

2. A apoteose do plural

O demônio sabe que tem pouco tempo

(Apocalipse, 12, 12)

Os modernos concursos de beleza têm um precedente mitológico na Ilíada de Homero, o que dá um certo prestígio a este fenômeno de gosto mais que duvidoso. Naquela altura a miss da civilização grega devia ser designada por Páris entre Hera, Palas Atenéia e Afrodite. O corajoso guerreiro pegava, pensativo, numa maçã cuja entrega significaria a decisão da sua difícil escolha. Rubens, Ticiano e Feuerbach pintaram a cena com uma tensão magistral, criando uma atmosfera de expectativa perante a iminente resolução de Páris, cujo dilema era que gostaria escolher sem ofender ninguém, porque o superlativo não nega a beleza das outras, embora inevitavelmente a eclipse. Infelizmente, a beleza é de quase todos, mas sobre o superlativo da beleza reina o mais severo regime de propriedade privada. Os pintores imortalizaram o momento prévio à decisão; fixaram para sempre o que para os protagonistas foi apenas um breve momento de indecisão e impaciente espera.

A designada foi finalmente Afrodite, e assim começou a guerra de Tróia. A história põe em ligação as coisas do amor com as da guerra de uma forma nada gratuita. É como se procurassem dizer-nos indiretamente que a culpa dos conflitos humanos é dos superlativos, que mais não são do que erros de óptica do nosso olhar discriminador. É a esta sedução do superlativo que se devem as guerras entre os homens. A seletividade deixa de fora muitas coisas que também são boas, belas e verdadeiras, contra as quais o eleitor se revolta com fúria para sublinhar dramaticamente a oportunidade da sua eleição. A seletividade parece inocente, mas esconde sempre uma tendência para se converter em exclusividade. Se nos conformássemos com a pluralidade do que é bom evitar-se-iam todas as guerras declaradas em nome do que é melhor. O mundo em que vivemos seria na realidade um encontro de mundos muito diferentes, de relatos complementares, donde só seria proibido o veredicto do que é único e do que é ótimo, pelo que desapareceria a ofensa comparativa em prol da coexistência pacífica.

Desde que há filósofos na terra que se acirrou a concorrência; a Filosofia é a continuação da guerra por outros meios, pois aspira ao monismo do singular, ao superlativo fatal, à designação de um mundo como sendo o melhor dos mundos possíveis, e até como sendo o único dos possíveis. Esta concorrência torna-se cansativa, e muitos gostariam que a razão deixasse de ser um tribunal implacável para se converter num inocente supermercado. Hans Blumenberg é um dos mais fervorosos defensores desta apoteose do plural: “vivermos em mais de um mundo é a fórmula das descobertas que são a conquista filosófica deste século”44. O pensador alemão é, aliás, um excelente contador de histórias e propôs um gênero narrativo para o exercício da atividade filosófica de que os seus livros são uma fascinante encenação. Num deles conta-nos a história da filha de um guarda florestal, uma história que vai buscar ao pedagogo Klöden. A rapariga não conhece os caminhos que atravessam a floresta em cujo interior se encontra a sua casa.

“Feliz ignorância! Para esta jovem todos os conhecimentos geográficos terminam depois de um quarto de milha, e o mundo perde-se no indeterminado. A esfera da sua atividade não era mais pequena que a do seu mundo... Que amplitude poderá alcançar a esfera do pensamento numa cabeça assim?”45

É o fascínio do singular, da coincidência entre o meu mundo e o mundo, o que transparece na metáfora do jardim pessoal. Il faut cultiver son propre jardin, dizia Voltaire, como Rousseau ou Epicuro, como o quarto próprio recomendado por Virginia Wolf às mulheres. Esta saudade da finitude era descrita por Hölderlin como uma viagem para a liberdade concreta:

“Refugiar-se num vale sagrado dos Alpes ou dos Pirineus e comprar aí uma casa amiga e a suficiente terra fértil que se requer para a dourada mediocridade da vida”46.

44.

Wirklichkeiten in denen wir leben, p. 3.

45.

Lebenszeit und Weltzeit, Frankfurt: Suhrkamp, 1986, p. 56.

46.

Hölderlins Sämtliche Werke. Grosse Stuttgarter Ausgabe, III, p. 133.

É a grata simplicidade de uma vida e um mundo que sejam iguais em amplitude, sem desajustamentos que compliquem a nossa percepção da realidade: zonas desconhecidas, espaços de obscuridade, âmbitos ininteligíveis, excesso de complexidade... Que felicidade e — ao mesmo tempo — que limitação! Daí a inveja de alguns filósofos face ao ingênuo e ao ódio pela incongruência entre o mundo e o pensamento. A vida deveria durar eternamente, como a indecisão de Páris imortalizada nos museus. Mas o tempo do mundo e o tempo da vida separam-se inevitavelmente com a descoberta da variação do real. O intérprete tem pouco tempo, apenas um prazo; sabe que não pode conhecer a fundo a realidade e que a única coisa que lhe é permitida é fabricar significações, aumentar a pluralidade das histórias. O que ouvimos são só histórias, das quais nenhuma é a única, embora algumas se apresentem como se o fossem.

Com esta história Blumenberg mostra como a simplicidade também se pode transformar em atrocidade. O monismo do singular superlativo é inocente quando o mundo que se controla é uma pequena clareira de floresta, mas dramático quando não tem limites. Nikolaus von Below diz que Hitler, depois da ofensiva das Ardenas, declarou com dramática solenidade: “Nunca capitularemos. Podemos perecer. Mas levaremos o mundo conosco”47. Hitler já tinha subordinado os seus planos políticos à sua própria expectativa de vida. A resolução de submeter a necessidade de um tempo objetivo à posse de um tempo subjetivo implicou uma decisão a favor da guerra, que acelerou tudo para o desastre final. O paranóico de consciência messiânica deve ter pensado: atrás de mim nada mais pode vir. O tempo do mundo e o tempo da vida afundam-se simultaneamente.

O que parece falsificar o pensamento é a fixação no próprio tempo da vida, nas experiências adquiridas e o fazer de qualquer contingência uma questão de princípio. A verdadeira Filosofia, pelo contrário, é uma discriminação do contingente e do consistente. Blumenberg formula da seguinte forma a verdadeira modéstia filosófica:

O sujeito mundano realiza-se na medida em que faz a mais difícil de todas as concessões que se lhe possam exigir: que o seu mundo não seja o mundo, que o seu tempo vital, em ligação com todos os tempos da vida, não se converta no tempo do mundo... É a renúncia a ser a medida de todas as coisas que faz com que o sujeito descubra o sentido da sua existência48.

47.

Cf. Sebastian Haffner, Anmerkungen zu Hitler, Munique, 1978, p. 14.

48.

Lebenszeit um Weltzeit, p. 306.

Blumenberg defende o plural. O mundo na cabeça de cada um é uma quimera do fanatismo pelo singular. Devemos manter a todo o custo a variedade, suportando até mesmo a contradição.

Na apoteose do plural, o sentido é a renúncia a um sentido. O pluralismo das significações converteu-se na disciplina da nossa época: encontramo-lo no elogio do politeísmo de Marquard, na pluralidade de narrativas de Lyotard, na apologia do efêmero de Lipovetsky, no pensamento fraco de Vattimo, na ironia de Rorty, na multiplicidade dos discursos proposta por Barthes, no funcionalismo da equivalência de Luhmann... Hoje, Páris não teria de tomar uma desagradável decisão, e ser-lhe-ia oferecida uma poligamia sem discriminações odiosas. Ou talvez imobilizasse o instante da dúvida, como o Fausto de Goethe pedia ao belo presente que não o abandonasse. Embora neste caso as deusas tivessem ficado impacientes.

Devemo-nos perguntar que tipo de comunidade ouve com satisfação este tipo de pregações. É evidente que ninguém deseja renunciar ao privilégio da diversidade. Mas o pluralismo é um valor pacificamente compartilhado, pelo que a sua repetição autocomplacente não deixa de ser gratuita. A pregação contra um dogmatismo que não existe, ou que é inofensivo, traz à luz uma enorme auto-afirmação. Talvez estejamos perante a velha tática de se tomar imprescindível apresentando-se como guardião do supostamente ameaçado. O injustificado fabrico de inimigos corresponde à pose de quem tem prazer sentindo-se em perigo, e confere a satisfação do denunciador.

Por que esta defesa do plural num mundo em que a pluralidade é garantida constitucionalmente e assistida pela amplitude das possibilidades de escolha? Não será mais urgente indagar as condições da escolha racional que limitar se a festejar a indeterminação? A Filosofia não nos liberta de quase nenhuma carga, mas poderá tornar menos pesada a decisão proporcionando indicações de racionalidade, isto é, critérios de discriminação e preferência? Provavelmente não dispomos de muitas verdades ao nosso alcance, mas sim das necessárias para lutar contra determinados erros, contra a história — ou melhor, as histórias — da desigualdade entre as raças e os sexos, contra as histórias da eficácia policial da tortura, contra as histórias da utilidade educativa do aborrecimento...

Estamos perante uma nova versão do paradoxo do mentiroso. Quem declara que todos os pensamentos estão submetidos ao efêmero condena-se a ver como as suas próprias reflexões sofrem do mesmo. Quem festeja a pluralidade fá-lo com paixão, desmentindo assim a idéia que queria propagar. A indiferença é um dogma como todos os outros, e se a apologia do pluralismo for feito de uma base tão frouxa, haverá que dar razão a Marcuse quando afirma que o pluralismo não é mais do que um plural do conformismo.

Este politeísmo pós-moderno, no fundo, não coloca outra coisa senão a renúncia à decisão. Exige-nos que alarguemos os segundos dubitativos de Páris à vida toda. Isto é um enquistamento da hesitação que entorpece o curso da vida. Este requintado diletantismo é uma pose acadêmica a cujo luxo não se podem dar as donas de casa, os canalizadores, os políticos ou os médicos. O cético razoável que Descartes foi viu isto muito bem. O segundo dos seus três princípios da Filosofia diz que é conveniente considerar tudo como falso (ou como igualmente verdadeiro, diria um pluralista pós-moderno). Mas este princípio cético é imediatamente isolado da realidade — da vida — pelo terceiro, que recomenda nunca aplicar este princípio às nossas ações. O indiferentismo suporta-se bem na biblioteca, mas é razoavelmente esquecido noutras divisões da casa.

Podemos contar muitas histórias, mas só podemos ter uma história. A necessidade de interpretar o mundo e atuar razoavelmente nele é tão imperiosa que as filosofias que se limitam a repetir a pluralidade de possibilidades com que contamos não oferecem qualquer ajuda para vencer a indecisão. Não fazem justiça à brevidade, à finitude e às urgências da vida corrente. Blumenberg pensa como um soberano alheio ao barulho mundano e absorto face às emergências da vida. “Não existe a pressão do tempo finito que empurre ou incite a ir mais além das obrigações fundamentais da teoria”49. Ora bem, se os homens têm direito a exigir dela mais alguma coisa do que um divertimento neutral, a Filosofia deveria perguntar pelo sentido profundamente humano da pressa — algo que Deus não tem e os animais não conhecem — e oferecer-se como um serviço de urgência para perplexos e desorientados. Filosofia como algo que não está sob os ditames do tempo escasso? Sim senhor. Mas no estado de graça de um tempo ilimitado também não.

49.

Id., p. 359.

Por outro lado, a mera tolerância passiva entre as escolas filosóficas não é uma situação propriamente filosófica. Wittgenstein afirmava que um filósofo que nunca toma partido nas discussões é como um pugilista que nunca sobe ao ringue. Há um certo fanatismo da dúvida, impermeável à contestação, que se apresenta como uma mal dissimulada arrogância, como a que acompanha tudo o que é incontroverso. Uma filosofia que não se arrisca a apresentar uma pretensão de verdade é uma mônada maciça que no fundo não está interessada na discussão racional e de qual não cabe esperar êxitos ou fracassos interessantes. A mera tolerância passiva entre as escolas filosóficas não é uma situação propriamente filosófica. E quando Leibniz dizia ter encontrado sempre algo de correto em tudo o que havia lido, isto significava que não levara muito a sério, como o autor, tudo o que havia lido. A coexistência pacífica das doutrinas filosóficas equivaleria à sua resignação definitiva. Mas o final desta anarquia filosófica seria o final da própria Filosofia e, o que é pior, o final do homem livre.

A Filosofia é inseparável da sua pluralidade histórica não porque a sua pretensão de verdade seja um lastro de que não se consegue libertar, mas sim porque essa pretensão se dá na História e nunca se resolve numa evidência que exclua definitivamente outras possibilidades. Por isso se deve remeter a História do pensamento para a sua gratuidade e para a sua contingência. O exercício de uma razão que tende para o superlativo é compensado pelo fato de, apesar de toda a Filosofia subverter a História, também ela própria poder ser subvertida. Esta faticidade da razão está presente como limite; não nos podemos livrar dela. A racionalidade dividida pela sua história deixa sempre um resto. Por isso as coisas importantes têm de ser contadas. Narrar é preciso.

As histórias dão sentidos plurais e indicam o caminho da felicidade. Mas não é suficiente ouvi-las; é preciso conduzir a própria vida de acordo com alguma delas. A indiferença é incapaz de dar felicidade, embora prometa impedir as decepções e afugentar as preocupações. E a suspensão do juízo não tem por que conduzir necessariamente a uma atitude de serenidade; pode arruinar o interesse pela vida na aflição ou no tédio. Não é necessário ser-se um dogmático nem um desequilibrado emocional para se pôr paixão nas opiniões ou decisões. Acaso não é possível ter preferências racionais?

Se vivesse agora, Páris poderia renunciar decidir. Ele próprio comeria a maçã.

IV. A RAZÃO CÔMICA

Eu rio-me nos funerais e choro nas festas
e encontro um gosto suave no vinho mais amargo;
com freqüência tomo os fatos por mentiras
e, de olhos postos no céu, caio em buracos.
Mas a voz consola-me e diz-me: “Guarda os teus sonhos;
os sábios não os têm tão belos como os loucos.”

BAUDELAIRE, La voix

1. A abstração como distração

A História da Filosofia é tão antiga como a acusação acerca da sua inutilidade. É uma história de tropeços e risos, de distrações e atenções, onde combatem até à morte o exótico e o vulgar, o ridículo e o sublime, o conhecimento do imperecível e a astúcia deste mundo, o cômico e o trágico, a recriminação e o elogio. Repassar o fio destas tensões pode servir — se não para nos convencermos da sua utilidade — pelo menos para aprender a desconfiar dos mandatários profissionais da arte de estar sempre na realidade.

Há uma velha história que Platão recolhe no Teeteto e que ao longo da História serviu para ilustrar as incompreensões despertadas pelo espírito contemplativo entre os homens “práticos” e “realistas”.

“Conta-se de Tales que enquanto se dedicava a observar a cúpula celeste e olhava para cima caiu num poço. Riu-se disto uma alegre e bela escrava trácia dizendo ao mesmo tempo: ‘Queres saber com verdadeira paixão o que é que existe no céu mas não vês o que há debaixo dos teus pés mesmo à frente do teu nariz’”50.

50.

174a-b. Hans Blumenberg recolheu uma grande parte da evolução desta história ao longo do tempo num sugestivo livro donde tirei a maioria dos textos a que me vou referir daqui em diante (Das Lachen der Thrakerin. Eine Urgeschichte der Theorie, Frankfurt: Suhrkamp, 1987).

A figura do sábio que perde o pé e cai de chofre na realidade imediata é uma velha imagem em que se recrearam todas as culturas que mantêm um respeito reverencial pelo homem teórico, mas o desprezam na vida prática. Ao longo dos séculos foi-se formando o estereótipo do homem distraído, afastado da vida pública e das habilidades da vida diária, absorto nas sua elucubrações de incerta utilidade imediata. O encontro entre Tales e a jovem trácia compendiará todas as tensões e incompreensões entre o mundo da vida e a teoria.

Para Platão, tanto aquela comédia que se desenrolou à beira dum poço como a tragédia que levou Sócrates à morte são a expressão do choque entre dois mundos que têm uma concepção tão diferente da realidade que acabam no ridículo ou na condenação à morte. Aqui confrontam-se o conhecimento do céu e a astúcia da terra. Para esta, o inaceitável é a excentricidade do homem teórico e a sua particular concentração. O tempo da vida é breve, mas o da teoria parece ilimitado. Quando o seu interlocutor Teodoro pergunta a Sócrates “Ainda temos tempo?”, este responde-lhe que sim com um gesto irritado. No outro extremo está a retórica sofistica, a conversa cronometrada, sob a pressão do tempo escasso, isto é, a forma temporal em que vive o escravo. Mais ainda, na época helenística haverá toda uma escola filosófica a dos cínicos em que eles se porão no lugar da trácia, desprezando abertamente todos os teóricos de outras denominações.

Não obstante, é curioso verificar que Aristóteles — um filósofo caracterologicamente oposto a Platão — transmite de Tales um episódio em princípio de sinal contrário.

“Insultavam Tales porque ele era pobre, o que demonstrava que a Filosofia era inútil. Mas também se conta que, graças aos seus conhecimentos astronômicos, previu uma grande colheita de azeite e, ainda durante o inverno, quando tinha algum dinheiro, adquiriu todos os lagares de Mileto e Quios. Conseguiu alugá-los a bom preço, pois ninguém ofereceu mais do que ele. Quando chegou a altura, houve de repente uma grande procura. Então, voltou a alugá-los pondo ele as condições, ganhou muito dinheiro e demonstrou que os filósofos podem ser facilmente ricos se quiserem, mas que o seu objetivo não era este”51.

51.

Política, 1259 a9-18.

Aristóteles, ao que parece, não estava de acordo com a oposição entre a sabedoria teórica e a habilidade prática.

Tales foi denominado o proto-filósofo por ser o primeiro a procurar um princípio unificador de toda a realidade física, aprofundando na aparente variedade das coisas. A este respeito, Bacon acrescentou um comentário interessante ao contar o episódio do acidente aquático: é possível que este contato inesperado e provavelmente desagradável com a água fizesse com que ele se apercebesse teoricamente desta vez que este elemento podia ser o princípio de todo o real.

Pondo de lado qualquer elucubração, o aparente acaso de muitas descobertas teóricas não nos pode fazer perder de vista que toda a descoberta pressupõe uma atenção ao real, uma capacidade para se deixar surpreender. A Filosofia não é outra coisa senão uma estratégia para fortalecer a atenção e suspeitar do mero acaso. Só se preocupa em procurar um fundamento aquele que vive como algo precário os fundamentos nos quais habitualmente nos desenvolvemos, aquele que se despoja de todas as proteções com que o homem comum tenta precaver-se da possibilidade de uma pergunta aberta, de uma inquietação insatisfeita, de uma solução inconsistente.

Uma das piores coisas que acontece a quem não sabe e não se preocupa com isso é, precisamente, não ter a mínima idéia de até que ponto vai a sua ignorância. Ilustrar esta situação, proporcionar a consciência do que não temos, dar-nos uma certa idéia do limite que não somos capazes de ultrapassar é, em grandes traços, aquilo que Kant pretendeu fazer na sua filosofia crítica. Ao ignorante há que oferecer-lhe de fora a consciência desta ignorância, pois tropeça numa realidade que ele é incapaz de ter em conta. Kant converte-se no advogado de Tales face à audácia da escrava e inverte os papéis: já não é a realidade terrena que os conduz ao realismo, mas sim a teoria do céu, ao mostrar a futilidade e pequenez do imediato.

“As observações e os cálculos da Ciência astronômica ensinaram-nos muitas coisas dignas de admiração, mas mais importante é que nos desvendaram um abismo da ignorância que, sem aqueles conhecimentos, a razão humana nunca teria podido imaginar como algo de tão grande”52.

52.

Kritik der reinen Vernunft, B 603 (III, 387).

O orgulho escondido por detrás do riso ergue-se sobre a segurança de um solo inamovível. E se também a terra que pisamos descontraidamente fosse móvel e ao ser abanada arrastasse consigo tanto o homem teórico como o prático? Esta experiência deu origem a uma forte controvérsia quando em 1755 um terremoto arrasou a cidade de Lisboa. Foram muitos os filósofos que intervieram nesta controvérsia, que limitava o otimismo ingênuo do Iluminismo sobre as nossas possibilidades de assentar o progresso histórico. Neste momento, por assim dizer, a própria natureza adotava o papel da jovem trácia, e lembrava quer aos teóricos quer aos pragmáticos o que havia debaixo dos seus pés. Kant dedicou vários textos a este tema, e entre as suas conclusões, eu gostaria de destacar uma que é muito interessante para delinear a verdadeira dimensão do filosofar: a fragilidade do solo que pisamos, isto é, o caráter provisório das nossas construções e, portanto, a disposição para modificar as nossas previsões quando a realidade desbarata os cálculos.

Uma história simpática contada pelo grande pesquisador alemão Alexander von Humboldt e que poderia ser entendida como uma versão do século dezenove do antigo antagonismo entre a teoria e a vida. Trata-se de um episódio que ocorreu durante a sua viagem aos Urais e ao mar Cáspio em 1829. Se a considerarmos na sua relação com a história de Tales, podemos ver como já então a Ciência estava definitivamente estabelecida no mundo moderno. O relatório de um policial diz assim:

“Há alguns dias veio até aqui um alemão chamado Humboldt, seco, baixo de estatura, ar insignificante, mas importante (...). Embora eu o tenha recebido com o respeito que é devido, tenho que dizer que esta pessoa me parece suspeita e muito perigosa. Desde o principio que não gostei dele (...). Nunca honrou com o respeito que merecem as supremas personalidades oficiais da cidade e dedicou-se a falar com polacos e outros delinqüentes políticos que estão sob a minha guarda. Atrevo-me a informar que não deixei de prestar atenção a estas conversas com delinqüentes polacos, sobretudo desde que, depois de falar demoradamente, foi com eles até ao cimo duma colina que domina a cidade. Levaram até lá uma caixa e tiraram dela um instrumento que parecia um grande tubo que, a mim e a toda a gente, parecia ser um canhão. Depois o terem fixado em cima de três pernas, virou-o diretamente para a cidade e todos se aproximaram e olharam para ver se apontava corretamente. Dado que o considero de grande perigo para a cidade (pois é completamente de madeira) ordenei imediatamente à guarnição, composta por um suboficial e seis soldados, que apontassem com as suas armas para aquele lugar, que não percam de vista os alemães e verifiquem as suas intrigas. Se a velhacaria traidora desse alemão confirmar as minhas suspeitas, entregaremos as nossas vidas pelo Czar e pela Santa Rússia”53.

Humboldt representa aqui a posição de um teórico perante a desconfiança da ignorância. O ridículo está agora na suspeita que um funcionário da polícia imperial demonstrar ter perante a pacífica atividade de observar o céu. Os papéis invertem-se: o realismo passa a ser patrimônio do teórico e o tradicional bom senso de um homem vulgar converte-se em algo digno de riso. O mesmo contraste que aparece noutro acontecimento semelhante: o passaporte que permitia viajar pelas colônias espanholas continha o zeloso aviso de que lhe era permitido “utilizar com plena liberdade os seus instrumentos e efetuar observações astronômicas em todas as possessões espanholas”54. A perplexidade face ao que é novo adquire formas diferentes ao longo da História, mas todas elas têm o mesmo tom: o surpreendido adota um tom de soberania sobre uma realidade de cujas dimensões não tem a mínima idéia.

53.

Alexander von Humboldt, Gespräche, Berlim: Beck, 1959, p. 108.

54.

Id., p. 128.

Não há forma de fazer Filosofia sem abandonar a faixa do costume e o contexto habitual da utilidade. Quem age assim corre o risco de acabar nalgum poço, o que o afasta das seguranças que acompanham a falta de reflexão. Mas isto permite-lhe a distância que é necessária para decidir acerca do que é essencial e do que não tem qualquer importância, de separar o necessário do trivial. Pode haver sempre espectadores que se coloquem fora de cena, que se considerem dispensados de fazer este esforço. São os observadores de um naufrágio a partir da margem segura, que se riem e gozam por não se verem afetados pela catástrofe. Por outros czares, sim, arriscariam a própria vida. De qualquer modo, o riso que declara o final da Filosofia é apanhado pelo paradoxo de precisamente esta situação ter sido o começo da Filosofia.

2. A comicidade da teoria pura

Um triste preconceito leva-nos a supor que quem pensa não tem motivos para estar alegre. Pensar de forma realista é pensar a realidade, e a realidade não é divertida. Os dicionários aparentaram sinistramente o termo real com os de formal, comedido e circunspecto, o até com os de grave, adusto, carrancudo e sério. São afinidades que acompanham a verdade como uma corte de parentes inoportunos. Uma pessoa gostaria de casar sem se ver apanhado pelo séquito da noiva, mas não há amor sem comitiva, nem é possível “morder a isca” sem ser, de alguma forma, fisgado. Regra geral, não se pode querer a noiva sem a sogra, a realidade sem a tristeza; vai tudo no mesmo lote. Se isto é assim, o filósofo — enquanto protetor da realidade e do seu cortejo de inconveniências, como especialista da desilusão — deveria adotar um gesto sério e converter-se no guardião da gravidade.

Creio que não corresponde à Filosofia constituir-se em destinatária de todas as queixas da humanidade, na carpideira universal ou em advogada das causas perdidas. A Filosofia não é essa “ciência triste” que Adorno apregoava; pelo menos, nem sempre. Também conhece o prazer e a ironia. Proponho que examinemos esta questão em três passos:

a) como a teoria pode ser uma coisa cômica e por que, e que isso não é tão grave assim;
b) como a razão cômica — e não a razão crítica — é a subversão mais radical dos valores;
c) como o riso pode ser algo genuinamente filosófico, por vezes até o ato filosófico por
    excelência.

a) Que a teoria pode ser cômica e sabido pelo menos desde que Platão contou o acidente de Tales. A figura do filósofo como objeto de troça fez carreira como figura cômica desde Aristófanes até Moliére. Não penso que aconteça o que quer que seja aumentando a lista de impropérios, relatando alguns ridículos menos conhecidos.

Uma vez Flaubert disse que um dicionário de lugares-comuns tinha de estar escrito de tal forma que o leitor não soubesse se estavam rindo dele ou não. Pois bem, a leitura de algumas teorias cientificas produz exatamente essa ambígua impressão. Um artigo recente sobre teoria da ação numa revista especializada — aqui a omissão da citação não e um descuido, mas sim uma cortesia — parece estar escrito para causar esse efeito. O leitor inexperiente é informado da existência de um “buraco da ação” na investigação sobre a motivação humana, de fases “pré-decisionais e pós-decisionais, do modelo do Rubicão”, mediante o qual se descreve a fase volitiva da ação humana intencional. Após a eleição, que está “orientada para a realidade”, viria a volição, “orientada para a realização”. O autor dispara toda uma artilharia terminológica — cuja prolixa enumeração não podemos fazer agora — para concluir numa confusão mental de que se sente culpado e oferece uma saída com um exemplo simples. No final resulta que tudo era uma montagem conceitual para explicar o que se passa quando se tem de tomar uma decisão ao volante e como há algumas que são irreversíveis.

Tenho agora de justificar a minha afirmação de que ser ridículo em Filosofia não é muito grave. Tendo em visto este exercício iniciático da Filosofia, que se revela finalmente como uma evidência reconduzível ao bom senso, estamos inclinados a aceitar a crua realidade de a Filosofia consistir em dizer de uma forma que ninguém entende o que toda a gente sabe (Jacinto Choza). Quem é ridículo perde em solenidade o que ganha em aproximação ao povo.

A Filosofia não é uma ciência de verdades inacessíveis por princípio à inteligência comum. Toda a gente sabe alguma coisa de Filosofia; por isso nós, os profissionais da matéria, não nos devíamos preocupar do fato de se falar da Filosofia de um projeto ou da Filosofia de um novo aspirador. A Filosofia não admite o monopólio, nem é o resultado de uma racionalidade confiscada. Isto é assim porque a reflexão não é uma ocupação especializada, mas sim uma função cognitiva que, de alguma forma, está presente em todas as atividades humanas.

Em relação a este ponto, Hegel decretou algo que apenas serviu para acrescentar mais um motivo de desconfiança face à profissão filosófica. “O que é verdadeiro é uma ciência, é-o através e graças à Filosofia, cuja enciclopédia abarca todas as ciências verdadeiras.” Também as chamadas positivas têm “um fundamento e um princípio racional”; o seu lado positivo será o que mantêm de peculiar, mas a sua parte constitutiva, isto é, o princípio racional, “pertence à Filosofia”55. Penso que esta afirmação, apesar de poder ser entendida como uma declaração de imperialismo filosófico, uma ameaça de expropriação de toda a racionalidade, admite uma interpretação mais indulgente e menos difícil de aceitar pelos que se sentirem agredidos: não existe exatamente algo assim como que uma disciplina filosófica isolada das restantes e plenamente diferenciada delas. A Filosofia é a posse reflexiva do que se sabe sem se saber plenamente. A exclamação “Eu já sabia isto!”, que é proferida pelo historiador, pelo jurista ou pelo ator quando o filósofo lhe descobre a essência do acontecer histórico, do direito ou do teatro, é algo que só lhe deve encher de satisfação. É uma confirmação de que não andava muito longe do caminho.

55.

Enzyklopädie, § 10, IX, p. 53.

Outra história pode servir-nos para ilustrar os benefícios da comicidade filosófica. Kuno Fischer mantinha uma longa discussão com Trendelenburg a propósito da interpretação de um aspecto da filosofia kantiana. exatamente quando acabava de publicar a sua última réplica, comunicaram-lhe a morte — sem resposta — do seu interlocutor, face ao qual disse, cheio de perplexidade e desconsolado: “Eu não quis isso.” Aqui o cômico é o desconhecimento da sua própria irrelevância. Também não é grave que a comicidade apareça ocasionalmente desta forma. Outras profissões são infelizmente irrebatíveis; o filósofo conta com esses mecanismos de sanção que o avisam quando a sua desatenção é excessiva. Imaginemos o poço em que pode acabar o economista, o físico atômico ou o militar. As suas quedas arrastam consigo os potenciais espectadores, ao ponto até de não ficar ninguém com direito ao riso.

A impotência do teórico manifesta-se quando (e porque) a sua aparente sublimidade é situada no mundo da vida. Um filósofo excessivamente sério considerará que as suas teorias podem ser verdadeiras ou falsas, consistentes ou inconsistentes, mas não cômicas. Quando o cômico aparece é porque a Filosofia é vista como ação de um sujeito que pertence ao mundo da teoria e ao mundo vital, que nunca deveria ter abandonado. A referência do filósofo ao seu contexto vital, — o buraco do poço, o ridículo do seu poder, etc. — talvez sejam a única defesa dos não filósofos face ao injusto monopólio da racionalidade.

Algumas ciências tomaram bem nota da sua afinidade com o cômico. Há uns anos, um grupo de pedagogos e psicólogos publicou numa prestigiada editora alemã um livro‑homenagem a Ernst August Dölle intitulado Dicotomia e Duplicidade: Questões Fundamentais do Conhecimento Psicológico. No livro falava-se sobre as teorias da aprendizagem de Dölle e sobre a sua posição na disputa sobre o positivismo, a sua Teoria da rivalidade binaural, o seu Aproach fenomenológico a uma bio-logia da dúvida e muitas outras das suas contribuições à Ciência. Mas Ernst August Dölle era uma invenção. Um pequeno jogo que apenas pode ser detectado por muito poucos especialistas, e a comicidade ganhara a partida. A brincadeira serviu para concentrar a atenção num só livro, como se os outros fossem algo completamente sério, isentos de toda a comicidade. Fabricando intencionalmente o risível, faziam com que ninguém detectasse o cômico de muitas atividades científicas que não pretendem sê-lo.

Flaubert opinava que o futuro da Literatura consistiria numa aproximação à Ciência, imitando os seus modos. O que parece ter acontecido é precisamente o movimento contrário. A seriedade sem limites acaba por ser indiscernível do ridículo, que é o objeto das artes cômicas. Algumas disciplinas científicas parecem ter adotado traços cômicos e não por se terem aproximado da Literatura; não precisam da Literatura, reproduzem-se por si mesmas, gozam da mesma auto-referência que a linguagem poética, e só o iniciado consegue distinguir quando estão a troçar do leitor e quando não.

Esta alternativa é realmente penosa, mas não muito grave para os filósofos, que podem oferecer-se como discriminadores da troça, como especialistas a decidir quando estamos perante uma verdade e quando estamos perante uma coisa ridícula. Evidentemente, ainda não se inventou qualquer ciência que consiga detectar as troças do filósofo. Neste caso o único remédio é o bom senso, do qual ninguém deveria prescindir, nem mesmo o desesperado que vai à consulta filosófica para ver se os outros se estão a rir dele. A Filosofia não exige a entrega do próprio bom senso e por isso se alegra de não ter perdido o bom senso do ridículo, goza contando — como fiz agora — histórias que manifestam claramente a sua própria comicidade.

A Filosofia tem a capacidade de se encontrar cômica a si mesma, de se aperceber da sua própria comicidade. Alguns pensaram que a queda de Tales no poço foi contada por ele próprio para efeitos de imagem: aquele ligeiro distanciamento do mundo que lhe permitia, sob a aparência de ser inofensivo, traficar também com o mais ofensivo. Por exemplo: que rir‑se da sua própria comicidade pressupõe fazer ostentação da sua própria lucidez.

“A Filosofia consiste em rir-se da Filosofia”, disse Pascal56. Na classificação hierárquica tradicional dos saberes defendia-se que uma ciência não podia indicar qual era o seu objeto (o que poderíamos traduzir assim: é incompetente para detectar a sua própria comicidade). A cadeia de legitimações concluía exaltando a Filosofia. É possível que este privilégio esteja justificado, mas penso que a única versão aceitável hoje seria: a verdadeira superioridade é a que provém do riso auto-referencial.

56.

Pensées, 4 (ed. Brunschwicg).

A Filosofia pode rir-se de todas as outras porque se apercebe das suas insuficiências, mas se deixasse de ver a sua própria comicidade perderia o seu direito de ser a última a rir-se. E sentir-se capaz de se ser ridículo significa ser-se consciente da sua própria relatividade. A Filosofia está no cume, ou seja: está mais exposta, e a sua fraqueza é menos ocultável. É mais uma amostra de que, no mundo descentrado da pós-modernidade, o mais alto é o mais frágil; o poder já não é majestático e sério, mas sim acessível a qualquer um sob as diferentes formas do riso, desde os mais benignos aos mais cruéis.

b) Procurarei mostrar também que a razão cômica ultrapassa a razão crítica quanto à sua capacidade subversiva. Numa cultura que absorveu a crítica até a tomar inofensiva e que fez da revolução uma lembrança e um adorno para saudosistas, a ironia é a única coisa que até agora ainda não foi domesticada. Além disso tem a vantagem de não pretender para si mesma qualquer privilégio, pois conhece os seus limites e sente-se a si própria sem qualquer patetismo, ao contrário dos fundamentalistas da crítica e dos transformadores invulneráveis ao desalento. Talvez seja a forma de resistência que menos precisa de certezas, a que mais dificilmente imita os maus modos daquilo que critica. E, ao mesmo tempo, corrói os convencionalismos sérios a partir de dentro, mostrando um ridículo que eles mesmos fazem, sem se apresentar como exemplo do que quer que seja; torna tão movediças as fronteiras entre o sério e o cômico que não há demarcação oficial que tenha a certeza de estar no lado correto.

Algumas definições do riso podem ser-nos úteis, uma vez ultrapassada a ressaca do seu aparente tecnicismo, para esclarecer esta função. Schelling definia‑o como sendo “a inversão de qualquer circunstância que se baseia numa oposição”57. Esse mesmo jogo de contrários aparece na caracterização proposta por Hegel: “a subjetividade que, pela sua própria ação, entra em contradição e a resolve, mas que depois fica tranqüila e consciente de si mesma”58. Isto é: uma aniquilação em que nada é aniquilado. A Filosofia alemã do nosso século continuou a destacar algum tipo de contraste como fundamento escondido do rir. Joachim Ritter opinava que o riso tem como função peculiar a de “tomar visível a pertença do outro à realidade vital que o excluíra”, isto é, essa “pertença secreta da nulidade à existência”, com indiferença de se isto supõe “uma crítica ao próprio mundo e à sua ordem”, ou se corresponde à “alegria vital pela riqueza da vida e pelo direito do sem-sentido e do mistério”59. Odo Marquard acrescentou: rimo-nos “quando o oficialmente importante se revela como uma nulidade ou a futilidade oficial como algo de valioso”60.

57.

Philosophie der Kunst, Sämtliche Werke, ed. K. F. A. Schelling, Cotta'sche Buchhandlung, Stutgard‑Augsburg, 1865-1961, V, p. 712.

58.

Ästhetik, XV, p. 552.

59.

Über das Lachen, Subjektivität, Frankfurt: Suhrkamp, 1974, pp. 76 ss.

60.

Aesthetica und Anaesthetica, Paderborn: Schöningh, 1989, p. 55.

O humor costuma ter um lado nostálgico, porque pressente que não são a mesma coisa o reconhecido e o digno de reconhecimento, que em todo o sistema sócio-cultural há uma proibição tácita de se pôr em questão as estimativas oficiais. O riso faz cambalear a ostentação que é necessária para estabilizar a realidade oficial. Mas também se poupa a seriedade que seria necessária para entrar em colisão com essa realidade. A comicidade goza da vantagem do estatuto da impotência; faz com que seja visível a contingência das coisas; está de acordo em assinalar que as coisas podem modificar-se, mas não as modifica. A teoria tem que pagar a sua distância ao mesmo preço que o riso: com a impotência.

Em que condições é possível então o desprezo humorístico das demarcações oficiais? O riso parece exigir um dualismo que inverte a ordem, o salto inesperado de um contrário para o outro: do solene para o ridículo, do grosseiro para o exato, do esforço para a descontração, da vitória para o fracasso. Sem dualismo não há contraste e sem contraste desaparece aquele deslize feliz que impele ao riso. Onde tudo é sério há tão poucas possibilidades para humor como numa sociedade onde nada fosse a sério. A gravidade e a trivialidade generalizadas são igualmente aborrecidas.

Só é possível rir-se onde nem tudo é transparente, ou seja, onde ainda são possíveis as surpresas; o riso — como um fazer valer o não-oficial — pressupõe que existe o não oficial. Mas isto é precisamente o que a critica não pode nem quer suportar; como não pode fazer outra coisa, deve eliminar o riso; pois a critica é precisamente tornar oficial tudo o que é não‑oficial e transparecer tudo o que não é transparente61.

61.

Aesthetica und Anaesthetica, p. 57.

A Filosofia tem de enfrentar muitas vezes situações em que o oficial e o real não são a mesma coisa, quando o considerado como irrepreensível dá sinais de alguma debilidade, ao passo que aquilo que tinha sido oficialmente expulso da pólis demonstra ser imprescindível.

A Filosofia treina a atenção em relação àquelas situações em que a realidade se torna movediça, se dissolve a sua aparente solidez, se soltam as rígidas estabilidades, desbarata todos os cálculos, ludibria as nossas classificações, toma ilusório o mais consistente. Mas também toma nota, despreocupadamente e sem qualquer patetismo, de como as suas novas respostas correm sorte idêntica ao que ela própria havia subvertido. O riso bem entendido começa por nós próprios. A alegria da Filosofia deve-se ao fato de ela ter degradado a seriedade — incluindo a sua própria seriedade — à condição de um momento, de lhe ter tirado o caráter de última palavra, de sanção definitiva.

c) Falta-me provar que o riso tem utilidades filosóficas, apesar de estarem matizadas pelo fundo da sua inutilidade gratuita. Uma curiosa coincidência faz com que a definição kantiana do riso sirva igualmente para a Filosofia. Kant definia o riso como “repentina transformação de uma tensa espera em nada”62. Esta pode ser uma a definição justa da Filosofia, que pode rir ou fazer rir.

A Filosofia provoca o riso quando se esquece da sua finitude e tenta aparecer como uma Imobiliária do ser, uma Distribuidora de sentidos ou uma Funerária. A comicidade é então o resultado duma solenidade que se revela como uma pequenez; da grande expectativa de um “parto da montanha”; de pôr-se em marcha rumo à grande expedição transcendental em busca do ser esquecido e regressar com fragmentos do sabido; de declarar a morte de Deus sem conseguir acreditar no que se diz; de fazer guerra à modernidade enquanto se vive dos seus subsídios.

Mas há uma ameaça de ridículo que não é fruto da presunção e no entanto é consubstancial às situações-limite em que trabalha a Filosofia: é o fato de o risco da derrapagem filosófica ser tão elevado quanto saudável. A Filosofia sempre tornou as coisas mais difíceis do que eram: não só quis conhecimentos, por exemplo, mas também saber como eles eram possíveis e qual era o seu grau de confiabilidade. A Filosofia colocou-se sempre em situações extremas, em palcos escorregadios e em combates com realidades fugidias. É este precisamente um dos seus paradoxais motivos de orgulho: pôr-se em condições nas quais se possa descobrir a sua inutilidade, arriscar a sua própria reputação em situações de alto risco especulativo. Mas não expor-se a profundos desvarios teria sido condenar-se a nunca capturar qualquer verdade interessante.

Existe uma pertença mais radical do riso à atividade filosófica. A Filosofia como riso, o filósofo que ri. Ri-se quem não é capaz se desenvencilhar de qualquer coisa, quem não consegue e sente a sua falta de jeito63. Se o riso que então provoca nos outros se torna seu, o filósofo conseguiu a maior lucidez de que é capaz. A Filosofia converte-se assim na inatingibilidade institucionalizada.

62.

Kritik der Urteilskraft, Ak, V, p. 332.

63.

H. Plessner, Lachen und Weinen, Philosophische Anthropologie, Frankfurt: Suhrkamp, 1970, 99, onde utiliza a expressão, dificilmente traduzível: zum Lachen ist es ja nur, weil wir nicht damit fertig werden.

Rir e chorar são as duas últimas possibilidades que se nos apresentam antes de estupidamente mudos. São formas de aceitarmos o que não havia sido reconhecido até então: a negatividade nas suas diversas formas, como humor e melancolia, como tolerância e compaixão, formas do demasiado humano que havíamos tentado reprimir. É livre, digno, experiente, compassivo, amável, compreensivo quem é tão humano que não reprime o riso e a dor quando chegam com o seu veredicto final: as coisas não são tal como as tínhamos concebido e querido. Nunca ri aquele que sabe antecipadamente todas as piadas; não chora nunca quem nada tem a esperar. O riso exige a capacidade de se surpreender, e o choro a de se lamentar. Se a razão tem alguma coisa a ver com estas situações-limite, então ela não é a faculdade que desaparece perante estas dificuldades; o riso e o choro são a sua sublimação, a última a pirueta perante o inesperado, o recurso de um ator que esqueceu de repente a sua fala e se vê obrigado a improvisar.

Para a Filosofia, a comicidade não só é tolerável, como é necessária. Graças a ela, a Filosofia conserva as perguntas com as quais não se entende, que não sabe resolver. Se quisesse proteger-se de todo o ridículo possível, teria de escamotear precisamente os problemas para os quais só ela é competente, isto é: capaz de deixá-los como estão. Mais lhe vale deixar em aberto essa possibilidade de se enganar, não estar à altura do que dela se esperava, do que esconder-se na trivialidade minuciosa e exata. Na sinfonia filosófica, as grandes questões aparecem no scherzo, onde toda a afirmação traz consigo também a sua própria negação, cada nota a sua dissonância, o juízo a sua reserva, e o oficialmente demonstrado o seu desmentido camuflado.

Esta ironia não é o riso parvo de quem escamoteou a dificuldade e a consciência da dificuldade, mas também não é a gargalhada que resulta do desespero. O sorriso filosófico não vem, no meu entender, dessa “boa vontade da aparência” em prol da qual Nietzsche se empenhou em demonstrar que não havia qualquer verdade e que só apelava ao próprio vazio. É mais o sorriso melancólico e ambivalente com que Flaubert ou Musil acompanharam a sua representação de uma realidade construída sobre o nada, a nostalgia sarcástica que, no nada, evocava o sentido ausente e tornava possível compreender a ambigüidade da vida. Foi assim como a comicidade da teoria pura nos levou à concepção da Filosofia como ciência alegre, como uma aprendizagem do riso. A Filosofia ensina a rir sem morrer de rir ou, no pior dos casos, a viver com a dor para não morrer dela.

3. Recomendações para evitar o ridículo em filosofia

São inúmeras as histórias de sábios que mergulham no seu trabalho e quase nem se apercebem da realidade do mundo que os rodeia. O pathos da sabedoria surge da contraposição entre a existência tranqüila da biblioteca e as turbulências da rua. A erudição faz esquecer o essencial da vida ou, no melhor dos casos, contemplá-la como um espectador externo. Não passou despercebida a proximidade da comicidade desta atitude grave do douto. A distância pretendida em relação ao mundo real dá origem a uma infinidade de situações ridículas quando o mundo real se faz finalmente valer. E o palco que estava preparado para uma tragédia muda subitamente para a decoração de uma comédia.

Para o teórico especialista no real, é como se a realidade fosse uma coisa da qual nos devêssemos manter o mais afastado possível, se quiséssemos evitar o risco de ficarmos enredados nas tramas da sua conspiração. A detração é o preço inevitável de uma atenção encolhida ao importante, que é — para quem oficialmente sabe — muito pouco. O crescimento do saber seria uma diminuição do relevante. Mas à medida que diminui o âmbito do que é objeto de preocupação aumenta a hostilidade do desprezado em relação ao seu desprezador.

Algo parecido deve ter acontecido a Carnap, de quem se diz que nas suas aulas nunca pronunciava uma palavra que não estivesse no seu manuscrito, quando certa vez começou a dizer “minhas senhoras e meus senhores...”, enquanto procurava nos bolsos do casaco cada vez mais nervoso. Teve um gesto de pânico e pediu ao público que esperasse enquanto ia a casa. Encontrou lá as notas de que se esquecera e meteu-as num dos bolsos do casaco. Quando ia a sair, a senhora Carnap disse-lhe para mudar de casaco, pois tinha vestido o de estar em casa. O final da história pode ser imaginado bem como a angústia no rosto do mestre da exatidão. Ou se está na realidade ou se está na Filosofia. A realidade — utilizando neste caso a artimanha do casaco trocado — não deixa de castigar o seu esquadrinhador. Mas assim configura-se também o arquétipo do sábio cuja falta de jeito é sinal de um enorme heroísmo.

Um dos que melhor ironizou sobre a patologia da vida erudita foi Nietzsche:

“No livro de um douto há quase sempre algo de impressionante, impresso: por algum lado espreita o ‘especialista’, o seu zelo, a sua seriedade, a sua raiva, a sua super-estima do canto onde está sentado e a tecer, a sua corcunda (todo o especialista tem a sua corcunda). Todo o livro de um douto reflete também uma alma encurvada: todo o oficio encurva. Quando se volta a ver os amigos com os quais se fora jovem, depois de terem tomado posse da sua ciência: [...] Ai! Como eles próprios estão ocupados e possuídos por elas para sempre! Tendo crescido no seu canto, esmagados ao ponto de ficarem irreconhecíveis, oprimidos, despojados do seu equilíbrio, fracos e magros por todos os lados menos por um em que estão exuberantemente redondos... Uma pessoa comove-se e cala-se quando os volta a ver assim. Todo o ofício, até o que tem um fundo dourado, tem sobre si um teto de chumbo, que oprime sem cessar a alma até a tornar extravagante e tortuosa. Perante isto nada se pode fazer. Ninguém julgue que é possível evitar esta desfiguração apelando a qualquer arte educativa. Nesta terra, onde talvez tudo se pague demasiado caro, há que pagar por qualquer tipo de mestria; é-se homem duma especialidade ao preço de se ser também vítima do seu ofício”64.

64.

Die fröhliche Wissenschaft, 366 (KSA, 3, pp. 614-615).

O autor desta sátira foi um crítico implacável do homem alexandrino, do corretor e bibliotecário, do homem neutral que não tem ouvido para a música da letra, cego pela poeira dos livros e pelas erratas tipográficas.

Como evitar a comicidade da teoria pura? Ou melhor: como proteger a realidade dos filósofos? É um empreendimento certamente difícil, pois também a Filosofia se curva sobre si mesma, como uma amante ciumenta que se inimizou com todas as suas vizinhas. Não vejo outra solução senão obrigá-lo a compartilhar a nossa atenção que dedicamos a outras, pluralizar e diversificar o interesse do filósofo, cultivar uma atenção amplificada.

Que a realidade deva ser protegida face à Filosofia (face aos filósofos) implica que seja possível — mas não desejável — substituir a vida através do filosofar, ou fazer da Filosofia não só uma ocupação pobre mas honrada, circunscrita a um horário e por muitas limitações, mas também uma forma de vida que não conhece nem respeita fronteiras. A solução é novamente o contrapeso. Da seita dos filósofos só é possível proteger-se entrando por sua vez na dos automobilistas, montanhistas, poetas, social-democratas, cidadãos ou moradores. Da atenção monopolizadora só se foge lendo outros livros, ou o jornal, ou, melhor, nada. O filósofo nunca se deveria lamentar de ter outras coisas para fazer.

Os homens — entre os quais figuram os filósofos — têm constantemente muitas relações com a realidade, das quais uma (entre outras) é ou pode ser a Filosofia. A cegueira — a corcunda — que é motivo de regozijo para os homens “práticos” surge quando se reduz esta pluralidade de relações com a realidade a uma única, porque isto conduz à perda da realidade. Todos nós somos cidadãos de vários mundos, cada um dos quais limita o poder dos outros e, deste modo, protegem-nos da agressão de uma única relação com a realidade. Desta pluralidade depende a nossa liberdade.

A estupidez é o resultado de um ato de monopolização pelo qual uma destas relações se converte em poder único. A própria Filosofia é assim ridícula quando — através de uma espécie de fundamentalismo filosófico — pretende fazer da relação peculiar com a realidade que ela é um poder sem rival, uma relação que exclui e substitui todas as outras. A sola philosophia é muito pouco sábia: não tardará a acabar esgotada pelo esforço, e terá conquistado o receio das suas antigas colaboradoras na tarefa de colocar o homem numa razoável trama de relações.

É esta sobrecarga da Filosofia o que explica o curso ambíguo que ela seguiu desde que deixou de ser escrava para se converter em dominadora, em vez de ter reivindicado o que lhe convinha: ser cidadã. No idealismo alemão culminou a grande façanha de a colocar no cume do saber e com pretensões de exclusividade. O efeito que tal gesta haveria de provocar na Filosofia era o de a converter em destinatária exclusiva de todas as expectativas: tudo se espera dela. Mas esta expectativa só pode decepcionar.

A tentativa de substituir a realidade que falta pela Filosofia que sobra transforma-se inevitavelmente na impressão de se ser enganado pela Filosofia em nome da realidade. E esta impressão desemboca numa cultura geral de suspeita em relação à Filosofia. A esperança absoluta na Filosofia traduz-se no desespero absoluto em relação a ela, que, deste modo, inventa a arte da desilusão e faz à própria Filosofia a crítica da ideologia (desde o pós-hegelianismo até à desconstrução, passando por todas as filosofias da suspeita). Há aqui uma nova manobra da astúcia filosófica para não ter de abdicar da sua soberania.

A impaciência face aos resultados — irreais — da teoria cede o lugar à consciência de uma nova missão: a de ser potência de melhoramento do mundo, revolução, práxis. Na medida em que a Filosofia continua a ser o único ponto de união com a realidade, considera-se suficiente possuir a filosofia deste melhoramento do mundo para justificar os meios. A Filosofia transformada em práxis única converte-se na estupidez de sacrificar a prudência — o saber prático — em nome de uma finalidade inequivocamente apontada pela Filosofia única.

Ouvir a Filosofia a pregar o espírito crítico, o ceticismo, a dissidência e a irreverência, e ver, ao mesmo tempo, que os que isso fazem se interrogam cada quatro ou cinco anos como foi possível eles acreditarem nas coisas incríveis que foram afirmadas por este ou por aquele, e procurarem logo um substituto em quem acreditar, é uma experiência que dá uma triste idéia da condição intelectual em geral. Basta considerar todos os ídolos que foram gerados pela pretensão de destruir os ídolos e toda a inabilidade que se escondeu sob determinadas ideologias da suspeita para nos apercebermos que a Filosofia teria um enorme interesse em meditar modestamente sobre estas palavras de Lichtenberg: “Para a mosca que não quer ser esmagada, o mais seguro é pousar sobre o próprio mata-moscas”65.

65.

Schriften und Briefe, Munique: Hanser, 1968, Sudelbücher, J. 415.

A desconfiança como especialidade é filha deste penoso trato com o real que é a suspeita como sistema. Se fosse necessário escolher entre a estupidez e a ingenuidade, talvez a atitude filosófica correta estivesse mais perto da segunda. Apesar de tudo, não está posto de parte em absoluto que as coisas às vezes sejam realmente o que parecem ser ou o que tentam parecer, e que seja acessível nalgum lugar uma verdade que não seja simplesmente o disfarce duma mentira. Estar sempre preparado para reconhecer uma ilusão ou um engano interessado, por detrás do qual se apresenta com forma de verdadeiro o que é justo, é prudência e consciência críticas. Pretender encontrá-las forçosamente ali equivale simplesmente a substituir uma forma de fetichismo por outra.

Numa época em que as certezas são mais mitigadas, esta atitude não se apresenta com tanta arrogância, mas penso que é possível detectá-la em determinadas formas de sutil monopólio filosófico sobre a realidade. Parece-me que muitos problemas filosóficos desapareceriam se os filósofos conhecessem os avanços das ciências particulares; e também então se aperceberiam que não se pode entrar nelas como um elefante numa loja de louça, que se deve respeitar a sua lógica interna: que há problemas. A distância em relação aos problemas práticos dá às pretensas soluções fáceis uma evidência aparente e sedutora.

O tom moralizador de muitas filosofias, a sua aparência de bienfaisante simplicité, é devida ao desconhecimento da problematicidade de outras relações com a realidade. A moral que prega a sola philosophia é de uma facilidade inaudita que suscita o ridículo e, por vezes, a compaixão. Se a moral era algo que tendia a complicar a vida ou que procurava aceitar a complexidade, o filósofo moralizador converte-a na grande simplificadora. Transformar os problemas numa coisa moral significa torná-los manipuláveis. Por isso não é estranho que quem não se dá bem com alguma coisa inicie uma fuga para a moral. A complexa cadeia de ligações causais torna-se assim abarcável. É traduzida para um esquema que corresponde a um terreno conhecido. O filósofo respira com alívio quando verifica que se livrou da angústia de penetrar numa ciência difícil.

É própria da mentalidade monopolista a retórica que conjura em tons ameaçadores o caráter catastrófico do presente, ao mesmo tempo que se põe a si mesma à disposição para controlar a ordem pública mundial. Uma lógica do progresso investida em história da decadência participa da mesma mentalidade de sentido único. Mas não existe algo assim como que uma “vanguarda filosófica” a partir da qual se contemple soberanamente a significação histórico-universal de todo o particular, a sua inserção no curso do mundo. No melhor dos casos, os retalhos dessa significação terão de ser arrebatados no âmago dos interesses humanos, com os quais o próprio filósofo deve contaminar-se. O verdadeiro interesse é aquele que o livra de ficar atônito perante o curso cambiante dos acontecimentos.

Nada há mais ingênuo — no sentido menos nobre da palavra — que representar de modo global a Filosofia como sendo a forma da lucidez e da verdade desarmadas que se lança na guerra — perdida de antemão, mas por isso mesmo mais nobre e gloriosa — contra os poderes da ilusão e da mentira, como se ela própria nada tivesse a ver com o prestígio, a dominação e os malefícios daquelas. Tornou-se um lugar-comum entre muitos filósofos exigir à ordem estabelecida que os considere como uma espécie de funcionários da impugnação. Paul Valéry compreendeu esta inconseqüência quando afirmou: “em todos os lados brilha e se agita a crítica dos ideais que ofereceram à inteligência a oportunidade e o tempo livre para os criticar”66. Felizmente, quase ninguém leva a sério as declarações de guerra dos filósofos à ordem estabelecida, mesmo que seja só por quase todos manterem com a realidade uma relação mais plural que a dessa rebelião indiferenciada. Não está ao alcance do homem comum a capacidade de esquecimento ou de desconhecimento de que goza o distraído encarregado da negação.

66.

Oeuvres, Paris: Gallimard, Pléiade, 1973, I, p. 511.

A Filosofia acadêmica — a que se dedica primordialmente à investigação de textos filosóficos em sentido estrito, isto é, textos, doutrinas ou sistemas que mereceram este título em exclusivo — às vezes esquece que quase nunca foi uma disciplina particular, uma questão completamente autônoma e diferenciada, mas sim uma reflexão suscitada no próprio decurso dos interesses morais, estéticos, científicos ou políticos. E neste mesmo século ensinaram Filosofia muitos que provinham de outros campos, ao mesmo tempo que grande parte das inovações filosóficas foram suscitadas fora do âmbito acadêmico, em Ciências diferentes da Filosofia, como a Economia, a Filologia, o Direito, a Etnologia, a História da Arte ou a Física.

Convém, portanto, não só ter filosofia, como também distância face à Filosofia (isto é: curiosidade, paixão, deveres, pressa, fome...). Só é bom filósofo aquele que não é unicamente filósofo. Esta distância face à Filosofia é o elemento mínimo de ceticismo que convém a qualquer filósofo. E entendo por ceticismo a atitude a que pertence também um pouco de confiança na racionalidade das atividades que estão fora da Filosofia e nas quais é possível aprender muito, nem que seja só a relatividade da própria ocupação. Se me permitirem, proponho que se acabe com esse preconceito de que não há racionalidade séria senão dentro da Filosofia, preconceito ainda vigente em cabeças de escassa curiosidade e excessiva erudição. Não tem qualquer sentido pensar que o sentido de uma atividade particular é dado pela sua inserção numa cosmovisão filosófica geral.

O Estado prussiano concebeu-se assim: toda a atividade elevada — a dos funcionários, como é óbvio — devia ser dirigida por uma concepção filosófica (é com a mesma devoção que hoje se vão adornar de Filosofia profissionais muito diferentes, sem que os filósofos se preocupem com a curiosidade inversa de aprender com eles). Assim argumentava Fichte no seu projeto de fundação da Universidade de Berlim. Dizia que o Estado faria bem se enviasse durante algum tempo todos os seus funcionários para o isolamento monástico, de forma a poderem dedicar-se à teoria pura. Não seria atualmente recomendável que os filósofos iniciassem o caminho inverso em direção ao mundo real para se dedicarem à teoria impura?

A sobrevivência da Filosofia depende de que ela saiba exercer com humildade esta impertinência. Consistiria em cobrir-se com uma ingenuidade infantil que fizesse da Filosofia uma disciplina intrometida e do filósofo um desmancha-prazeres do lugar-comum, do consenso dominante e das tradições não justificadas. Face à cultura, a Filosofia contém sempre um momento de ceticismo. Kant chamou o cético “uma espécie de nômade”67. Pois bem, a forma atual de nomadismo filosófico é o turismo dentro das ciências: a incursão do filósofo em territórios vizinhos, estranhos e até hostis. Lugares incômodos que, não obstante, guardam elementos de fascínio, enigmas virgens, situações de risco especulativo que contrastam com a aborrecida auto-referência do discurso filosófico profissional.

67.

Cf. KrV, A IX.

Este turismo pelas ciências vizinhas — a Estética, a Física, a Política, a História... — é hoje em dia inescusável, uma vez que — como advertia Adorno — a lua onde anda o introvertido arquiteto mental já foi conquistada pelos técnicos extrovertidos. Parece-me que é esta a única forma de a Filosofia poder ser aquilo que Hegel escreveu na Enciclopédia: a consciência reflexiva dos objetos, a ultrapassagem do imediato, a problematização do costume histórico, do socialmente vigente, das atividades que não podem dar razão de si mesmas. Mas desta relação não saem só vitoriosas as ciências; também a Filosofia clarifica a sua função quando penetra na trama sócio-cultural e se preocupa — como propunha Kant — com “o que necessariamente interessa a todos”.

A Filosofia não é um assunto exclusivo de especialistas, um âmbito especial vetado ao interesse vulgar e ao bom senso, uma espécie de Departamento de Verdades Sublimes. Pelo menos não deveria sê-lo. Penso que o curso das coisas, a nossa trama cultural e a nossa situação histórica não permitem que a Filosofia se enclausure nos limites de um território pré-fixado. O mundo, o homem, a História sofreram tantas mudanças que nem sequer podem ser vistos de uma única perspectiva. Pelo contrário, precisamos de uma reflexão transdisciplinar que não só integre algumas disciplinas isoladas, como também viole sistematicamente os seus limites; precisamos de um saber acerca de realidades contaminadas e por isso podemos evitar o esforço de manter métodos e interesses puros. A vida é implicação e entrelaçamento, tecido.

A nossa situação histórica faz com que o verdadeiro interesse da Filosofia esteja, no meu entender, no campo da Filosofia prática. Isto quer dizer que se a metafísica quiser ser a última palavra tem de resignar-se a não ser a primeira (Jacinto Choza), isto é, que existe um vasto âmbito de questões que limitam ou estão plenamente dentro das ciências particulares e onde o filósofo encontra interessantes desafios especulativos. Schiller ironizou numa das suas poesias filosóficas contra a arrogância teórica duma Filosofia elaborada de costas para a vida, auto-suficiente e abstrata:

“Que profundo está o mundo a meus pés!
Quase não vejo como se movem em baixo os minúsculos homens.
Como me eleva a minha arte, a mais bela de todas as artes, até à abóbada celeste!”
Assim exclama do alto da sua torre o talhador de pedras, o pequeno grande homem,
Hans, o metafísico, no seu escritório.
Diz-me, pequeno grande homem:
a torre donde tão altivo olhas, De que é feita?
Sobre o que está construída? Como subiste até ela?
E a sua clara atalaia, para que te serve ela senão para olhar para o vale?65.

O material sobre o qual reflete o filósofo, as pedras com que edifica a sua soberana atalaia, o vale que contempla não são propriedade sua. O filósofo não tem reserva de caça própria; dispõe unicamente de uma licença de caçador furtivo que lhe permite entrar nas reservas dos outros. A maior parte daquilo que o filósofo diz não é “Filosofia”. Às vezes isto é formulado como censura, mas é o seu melhor elogio. É a verificação habitual da sua incorrigível impertinência, que inquieta os defensores a todo o transe do regime de propriedade privada no mundo intelectual. Tenho a convicção que se não fosse por essas incursões nas quais se rouba um pedaço de vida real, os filósofos acabariam numa caçada atrás do ente de razão para afugentar o aborrecimento da reflexão pura.

Hölderlin aconselhava com entusiasmo o estudo da Filosofia e aplicou a si mesmo este conselho até ser invadido pelo medo de que a Filosofia lhe estragasse a linguagem.

Devias estudar Filosofia [garantia numa carta ao irmão em tom patético] mesmo que não tivesses mais dinheiro que o que faz falta para comprar uma lâmpada e azeite, nem mais tempo que o que vai da meia-noite até ao cantar do galo66.

65.

F. Schiller, Poesia Filosófica, Madrid: Hiperión, 1990, p. 113.

66.

69. F. Hölderlin, Correspondencia completa, Helena Cortés e Arturo Leyte (eds.), Madrid: Hiperión, 1990, p. 306.

É um conselho romântico que transformo noutro, menos lírico e mais de acordo com a prosa em que vivemos: além da Filosofia, deves ter com a realidade outra ou outras relações, embora — por “viver” da Filosofia e lhe dedicar toda a jornada laboral — não tenhas mais dinheiro que o que é necessário para comprar só um jornal e ir ao cinema uma vez por mês, nem mais tempo que o do engarrafamento em que te vês preso quando vais para o mundo irreal da universidade, que o necessário para saberes o que preocupa realmente o contínuo da biblioteca ou o necessário para uma rápida conversa com um vizinho no elevador.

Só se a Filosofia permanecer como uma relação com a realidade entre muitas outras é que respeitará a riqueza diversificada da realidade. A Filosofia, praticada com total exclusividade e levada até às suas últimas conseqüências, é uma sedutora que conduz vítimas inexperientes para a separação absoluta com a realidade. Por isso se deve pluralizar a atenção. Porque a realidade é demasiado importante para ser deixada apenas nas mãos da Filosofia.