O camelo, o leão e a criança que brinca

Nietszche, o filósofo ateu, sabia escrever bem. Seu livro “Assim falou Zaratustra” não deixa de ser uma bela obra literária, embora algumas das magníficas imagens que povoam o texto não consigam esconder o lado negativo de muitas das reflexões do autor.

Um parêntese: isso de Nietzsche ser ateu é algo bem sabido, mas sempre me pareceu estranho o fato de ele passar a vida inteira falando que Deus morreu, que o Cristianismo é coisa para trouxas, que admitir a existência de Deus é pura covardia, etc. Se Deus não existe, então por que se preocupar tanto em negá-lo? Nietzsche parece ter sido um sujeito que no fundo desconfiava dessa tese. Sua saúde frágil e seu modo agitado de pensar acabaram por levá-lo à uma tenebrosa demência, que anos de internação num hospício não bastaram para curar. Morreu louco. Seus últimos livros já não tinham nenhuma elegância: eram recheados de gritos e blasfêmias contra um Deus que ele talvez no fundo buscasse desesperadamente.

Pois bem. Uma das idéias de Nietzsche — associada a uma imagem, como de costume — é a do super‑homem: o homem esclarecido que, liberto dos velhos mitos, transforma-se num ser acima do bem e do mal, capaz de criar os seus próprios valores. É mais ou menos como um “grito da Independência” lançado contra a tudo e contra todos. O super‑homem vai sendo construído aos poucos dentro de nós — diz Nietzsche — e essa construção passa por três fases.

A primeira é a fase do camelo, na qual as pessoas submetem-se às leis e fazem o que lhe mandam, mesmo que por dentro reclamem, mesmo que isso lhes doa e incomode. Em português existe até a gíria “camelar”, que significa “dar duro”, trabalhar de forma custosa e incômoda.

Na segunda fase, a do leão, o homem se rebela, e solta toda a sua agressividade (como fez o próprio Nietzsce) contra a ordem estabelecida, recusando-se a aceitar o que todo mundo aceita, desrespeitando tudo o que há de mais sagrado neste mundo, destruindo tudo o que lhe faça oposição, sem dó nem piedade, querendo “ver o circo pegar fogo”.

Já na terceira fase, depois de conquistada a sua posição suprema, o super-homem não tem mais raiva: apenas compaixão (um tanto fingida) dos outros. Finalmente transformou-se num gigante, e já não tem colegas. É como se ele fosse Deus. O que lhe resta fazer? Brincar, deliciar-se com o mundo como um menino chutando a sua bola de futebol. Charles Chaplin, no seu filme “O Grande Ditador”, mostra uma cena em que um Hitler caricaturizado, bêbado de poder, dança segurando um grande globo terráqueo. A alusão a Nietzsche é óbvia.

Mas essa imagem pode ter uma outra interpretação, que Nietzsche certamente não viu, no campo da confiança, da solidariedade e da obediência.

Quando alguém nos manda fazer algo — ou simplesmente vemos que esse algo é nosso dever — uma primeira reação pode ser a do camelo, que pensa: “Oh! Que dureza! Vou ter mesmo que fazer isso? Quereria escapar, mas parece que não tenho outra escolha: vou ter que fazer, mesmo não querendo. Oxalá consiga acabar logo!” As tarefas empreendidas com esse espírito são de fato pesadas, e parecem que não vão acabar nunca. Fazemos de qualquer jeito, sem capricho, e o serviço (aliás mal-feito) é abandonado assim que param de cobrar, ou que a consciência deixe de doer.

Perante o que nos pedem, ou perante os nossos deveres, cabe uma segunda atitude: a do leão. Questionamos o que está mandado, exigimos explicações, e pensamos seriamente se vamos ou não aceitar aquilo, sem medo de enfrentar as conseqüências. Esse questionamento é bom porque nos obriga a pensar. Afinal somos homens, e não robôs! O que pode acontecer é errarmos no nosso julgamento, e a vida vai nos ensinando que reclamar um pouco pode ser razoável, mas que às vezes a desobediência tem conseqüências desastrosas.

O terceiro enfoque, o mais inteligente de todos, é o seguinte: não levar em conta apenas a coisa que nos mandaram fazer, mas principalmente quem é que nos mandou fazer aquilo. Se quem está mandando não merece muito a nossa confiança, é óbvio que temos toda a razão para ficarmos precavidos e não sermos enganados.

Mas se o mandante é alguém que merece toda a nossa confiança, então devemos pôr mãos à obra (mesmo que doa muito), pois podemos estar certos de que não nos pediria nada absurdo. É claro que sempre devemos informar quando honestamente pensamos que o assunto está acima das nossas forças, e aí o mandato será certamente modificado.

Trata-se de uma mudança de perspectiva, que afinal se mostra muito fecunda. Ao obedecer de coração, vencendo as resistências que o nosso orgulho e a nossa preguiça levantam, fazemos as coisas de modo mais caprichado, observando atentamente os resultados que vão aparecendo. Quando terminamos, a coisa nunca sai exatamente como quem mandou previu (pode sair até muito melhor), e este — como é pessoa de confiança — verá como é o nosso modo de trabalhar, fará as correções e os elogios oportunos, e dará ordens mais precisas e adequadas no futuro. Ambos aprendem a trabalhar melhor, e a confiança aumenta. É bonito comprovar que muitas vezes o que achamos que não daria certo acabou saindo melhor do que poderíamos imaginar, se tivéssemos seguido o nosso próprio critério.

Isso tudo se resume naquele dito popular: “Só aprende a mandar aquele que sabe obedecer”.

Obedecer confiando, mesmo contra o nosso modo de ver as coisas, é um jogo: fazemos as coisas de boa vontade (repito: mesmo que soframos um pouco), e pagamos para ver no que vai dar, sabendo que quem mandou também não vê tudo, e espera junto conosco o resultado. É uma via de mão dupla, como num jogo de tênis, onde a bola vai de um lado para o outro, e vice versa. De fato, quando terminamos de fazer o que nos mandarm, os resultados são como uma contra ordem dirigida a quem mandou: “Veja: eu fiz o que você me mandou, os resultados foram estes, e eu agora penso diferente do que pensava antes, pois vi a coisa funcionando. Qual é o próximo passo? Agora a bola está com você!” Isso pode ser muito divertido, e dar ao trabalho (e a tantas outras coisas da vida) a leveza própria dos jogos, o entusiasmo do esportista, a alegria da criança que brinca.