Tudo começa com um susto

Dar sustos nas pessoas para se divertir às custas delas sempre me pareceu uma brincadeira de mau gosto. Pessoalmente, fico muito irritado quando algum engraçadinho resolve fazer isso comigo. “Levar um susto”, porém, pode ser algo bem diferente.

É verdade que, na maior parte das vezes, levar um susto é uma experiência negativa: perceber repentinamente um perigo grande e bem próximo, ver de chofre uma coisa muito feia e repulsiva, dar-se conta de que um objeto valioso sumiu, etc. Mas existem também “sustos bons”: são aquelas surpresas fortes e marcantes, causadas por uma súbita visão de coisas sumamente belas e maravilhosas. Um dos mais comuns é o que acontece quando uma pessoa do interior vai ao litoral e vê o mar pela primeira vez na vida. Não fica apenas surpresa: fica como que extasiada, sumida no prazer que essa visão oferece.

Notamos algo disso nas crianças pequenas que começam a ter os seus primeiros contatos com as coisas: uma porta, uma janela, uma escada, uma tartaruga, etc. Mesmo não tendo muita capacidade reflexiva, essas crianças tomam esses “sustos bons” um atrás do outro, e isso se nota nos seus olhinhos arregalados e no seu sorriso, muitas vezes acompanhado de gritinhos de prazer.

Depois a vida se encarrega, infelizmente, de fazer com que essas reações quase desapareçam. Acostumamo nos a tudo, e torna-se cada vez mais custoso fazer entrar coisas novas nas nossas cabeças: basta lembrar do sofrimento que quase sempre acompanha a trajetória escolar da imensa maioria das pessoas.

Freud apregoava que todos somos neuróticos, e que o único consolo possível é induzir uma “volta à infância”, para encarar de frente o trauma (que para ele é sempre de natureza sexual) causador dessa neurose incurável. Discordo rotundamente dessa proposta, mas estou disposto a admitir que todos sofremos de um mal, que costumo chamar de “torpor cognitivo”. Esse mal tem cura, e a terapia consiste também numa “volta à infância”, não para ver coisas ruins, mas precisamente o contrário.

O principal sintoma da doença é uma espécie de cegueira que nos impede de tomar “sustos bons” diante das coisas que nos cercam. O pior é que os que sofrem desse mal acham que não estão doentes, e quando se deparam com alguém que já se curou, dizem que é um louco. Basta ver como são discriminadas as únicas pessoas realmente saudáveis desse mundo: os poetas, os filósofos e os místicos (é o nome que dou às almas de oração, como a das velhinhas que suspiram na penumbra das igrejas, pedindo a Deus que cuide bem das pessoas, de todas as pessoas deste mundo).

Queiramos ou não, todos temos dentro um poeta, um filósofo, um filho de Deus que tem saudades da casa paterna, e também uma alma de criança. O problema é que há um velho gordo e pachorrento sentado em cima deles, quase ao ponto de sufocá-los. Tirar esse peso de cima é uma tarefa que vale a pena, pois o seu rendimento é uma alegria imensa, quase infinita: uma libertação que nos abre as portas para uma vida serena, feliz, repleta de surpresas agradáveis em todos os dias.

Pode-se começar o tratamento a qualquer hora, e em qualquer lugar: basta fazer um primeiro esforço para olhar qualquer coisa de um modo ingênuo, radicalmente ingênuo, como se fosse a primeira vez que víssemos essa coisa. Pode ser uma pessoa, uma flor, um carro passando na rua, o tic-tac de um relógio, sei lá....

Um segundo passo é tentar ver o que acontece dentro de nós quando fazemos esse esforço: os olhos se abrem um pouco mais, notamos detalhes novos, nosso cérebro parece “sentir” que está pensando, e acima de tudo “desligamos” do corre-corre da vida. Quem começa a “viajar” dessa maneira, percebe que esse “viajar” é subir, e que quanto mais subimos, mais fortes ficamos.

Kierkegaard, o famoso filósofo dinamarquês, dizia que a “doença mortal” é a superficialidade: esse viver “fazendo de conta” que não há nada mais para ver, e que o único que nos resta é correr atrás do máximo de satisfações que nós mesmos consigamos conquistar.

Uma criança não “conquista” nada: apenas se abre, e a felicidade lhe vem de fora, das coisas mais simples que vai encontrando ao seu redor.

Alguém poderia objetar dizendo que o mundo não é um parque de diversões, e que precisamos enfrentar diariamente coisas duras e sofridas. Mas o fato é que o sofrimento é um vazio, e é justamente no “parque de diversões” que encontramos as coisas capazes de preenchê-lo (para começar, o Dono do parque). O ruim não é o sofrimento, mas a amargura de quem não tem esperança.

Um sinal de que o aludido “tratamento” está surtindo efeito é que a nossa curiosidade aumenta sensivelmente: coisas pelas que antes não tínhamos nenhum interesse começam a nos chamar a atenção. Sentimo-nos então capazes de formar uma opinião a respeito de assuntos muito diferentes dos habituais. O “torpor cognitivo” começa pouco a pouco a transformar-se em poesia, em filosofia, em interesse alegre por todas as coisas deste mundo, em expectativa de criança, e numa forma de oração.