A contemplação e os trouxas

O que é contemplar? O verbo é transitivo direto, e portanto exige um objeto. O primeiro que vem à cabeça é uma paisagem, ou um quadro, ou uma outra obra de arte estática (prédios, esculturas, etc.). Pensando bem, parece difícil encontrar outros exemplos. Podemos por acaso “contemplar” um teclado de computador? Não seria melhor empregar nesse caso outros verbos, como: “olhar (atentamente)”, ou “examinar”, ou “inspecionar”, etc.?

Os poetas dizem de si mesmos que são capazes de se embevecer e excitar o seu olhar contemplativo até mesmo diante de uma panela ou de um bueiro.

Mas os poetas são poetas.

É comum chamar de poetas aquelas pessoas lentas e distraídas que não sabem direito como são as coisas. Tais indivíduos parecem ter perdido o bom-senso: são uns trouxas que não conseguem fazer nada direito. São excêntricos; costumam ficar muito tempo parados, meio abobalhados, divagando acerca de besteiras inúteis. Há muitos “poetas” desse tipo andando por aí.

A contemplação, de fato, é algo que exige uma parada: uma espécie de pausa em meio a outras atividades, e por isso é coisa eventual, apropriada somente para os momentos de lazer nas férias ou nos fins-de-semana. Mas existe outra acepção da palavra que muito poucos compreendem e que esconde um enorme segredo.

Nesse sentido mais profundo, contemplação significa uma peculiar atitude diante da vida, que é bastante difícil de descrever. Talvez seja oportuno começar com um exemplo.

Imaginemos o homem primitivo (bem primitivo mesmo, do tempo das cavernas). Ele só deixou de ser primitivo porque foi capaz de descobrir ou inventar uma série de coisas muitíssimo importantes: o fogo, a roda, o arco-e-flecha, a agricultura, os metais, etc. Como ele fez isso? Não foi de repente. O desconhecido responsável por cada um desses achados luminosos gastou antes um tempo — mais ou menos longo — simplesmente brincando com os galhos e com as pedras e reparando no que tinha à sua volta. Seu olhar não era um olhar qualquer, pois todos viam a mesma coisa e só ele foi quem teve a idéia genial. Paradoxalmente, ele adiantou-se aos outros justamente por ter ficado para trás, parando e contemplando...

Pode-se dizer que a alma humana tem olhos. Olhos que podem permanecer fechados enquanto os olhos do corpo — e também os músculos, o cérebro, etc. — estão bem atentos e ativos. Com a alma adormecida, tudo o que o homem faz é andar em círculos, combinando o que já existe, sem a menor possibilidade de descobrir algo realmente grandioso.

O despertar da alma tem um impacto colossal: tudo o que vemos com os olhos do corpo passa a ter um certo brilho: um fulgor, uma luz especial. As nossas possibilidades de ação aumentam, pois somos agora capazes de perceber ligações escondidas, tesouros menosprezados, a mágica de um mundo onde tudo está interligado.

O que a alma enxerga quando abre os olhos? O sentido das coisas, os porquês de tudo e de si mesma.

Contemplar é a máxima forma de ação; uma atividade ultra-intensa, que potencia todas as outras. A contemplação é a mãe da invenção. Quem sabe contemplar vive de fato em outro mundo; mas esse é o verdadeiro mundo real, livre de ilusões.

Temos que tomar muito cuidado para não menosprezar a contemplação, confundindo-a com a pasmaceira. Se o fizéssemos, seríamos como os “humanos” dos famosos contos de Harry Potter: uns trouxas.