Os olhos e os ouvidos do rei

Essa expressão têm duas etimologias rivais (esse assunto de etimologias às vezes pode ser muito divertido). Uma delas remonta-se ao tempo dos antigos reis orientais, que gostavam de coisas exclusivas. Quando um dos seus súditos encontrava alguma rara preciosidade, todos à sua volta diziam que isso era para esconder e logo informar o palácio real, pois tanta beleza só era digna dos olhos e ouvidos do rei. A outra etimologia liga essa expressão à espionagem interna. Afinal, os serviços secretos que vasculham a sociedade procurando elementos subversivos ou perigosos para a segurança pública não são uma invenção dos nazistas: todos os governos mantêm equipes encarregadas desse assunto. No caso de reinos, os “agentes” funcionam com se fossem os olhos e os ouvidos do rei.

Pascal dizia que o homem é um grande rei, destronado. Além disso, todos nós temos olhos e ouvidos que ultimamente estão sendo muito pressionados. Refiro-me à chamada “cultura áudio-visual”, onde os sons e as imagens prevalecem sobre outras formas de informação/aprendizado/comunicação. A televisão ainda é a grande rainha, mas os elementos visuais da Internet e as músicas nos equipamentos portáteis (Ipods e companhia) vão ganhando terreno rapidamente. Isso sem falar nos cartazes de rua, telas nos elevadores, metrôs, ônibus, prédios, hospitais, hotéis, salas de espera, etc. Contam também o “som” nos carros, e os onipresentes videogames, jogados sozinhos ou compartilhados pela Internet. Uma certa pressão parece mesmo existir.

E daí? E daí que quase ninguém percebe que essa pressão é uma prisão. A vida é muito mais do que uma contínua bebedeira de sons e imagens.

Tenho uma certa pena das pessoas que fazem quase tudo com um fone de ouvido enfiado na orelha. Dependendo do volume do som, ficarão surdos bem depressa. Mas o pior é o gosto estragado, que enjoa cada vez mais rapidamente, até chegar a um tédio e fastio colossais, muito dolorosos. No caso das imagens, o problema é com a sua “incompleteza”: o que é destacado quase nunca é o que mereceria ser destacado. Os mais espertos já sabem — e avisaram — que a televisão manipula: está repleta de ideologias.

Uma pesquisa recente mostrou que crianças pequenas, que mal sabem ler e escrever, já são capazes de reconhecer um grande número de logomarcas: não sabem o que significa “girafa”, mas sabem identificar perfeitamente o símbolo da Nike ou o da Wolkswagen.

Alguns fazendeiros garantem que suas vacas dão um pouco mais de leite quando estão ouvindo Mozart durante a ordenha. Concedo que a música talvez possa ajudar (um pouco) os homens em trabalhos rudemente braçais ou nas academias de ginástica, mas pode atrapalhar muito quando temos que usar a inteligência.

Uma cena ocorrida no século III a.C. tem muito a ver com isso. O filósofo Diógenes de Atenas, que era meio radical, caiu em desgraça por ter provocado as autoridades, e foi preso. Os guardas encarregados de o levarem à prisão disseram-lhe que pegasse as suas coisas e que os acompanhasse. Diógenes não foi pegar nada; apenas respondeu com uma célebre frase, que enche de orgulho a todos nós, filósofos: “tudo o que eu tenho, sempre levo comigo”. Hoje em dia, quem não leva junto o seu fone de ouvido, quase não consegue andar. Sua cabeça é uma caixa quase vazia.

A inteligência depende muito da imaginação. E esta — simplificando um pouco as coisas — funciona em dois níveis: o eidético e o estrutural-projetivo. O primeiro nível trata das impressões (sons e imagens). São aquelas coisas que “grudam” mais e por isso reaparecem nos sonhos, por exemplo. O segundo nível — o estrutural projetivo — é muito mais importante: tem a ver com as composições passado futuro, lógica, matemática e geometria, reconhecimento de objetos a partir de uma parte deles, montagem de estruturas ou obras de arte, e principalmente com planos detalhados a médio e longo prazo.

Se uma pessoa — ou uma sociedade inteira — privilegia demais o áudio-visual, hipertrofia a sua imaginação eidética e estraga a estrutural-projetiva por falta de exercício. Caminha a passos largos rumo à burrice.

Como sempre, a solução é humanizar tudo isso: é conversar cara a cara (os meios eletrônicos de relacionamento, embora sejam interessantes para certos fins, não substituem nem de longe uma boa conversa “presencial”), é ler, é pensar a sós em silêncio, é criticar, é pedir conselho, etc. Só assim saberemos julgar tudo o que vemos e ouvimos, distinguindo o que é (ou não) oportuno e se é digno dos nossos olhos e ouvidos de reis.