O silêncio e a mentira

A poluição sonora nas grandes metrópoles já é um problema de saúde pública. Além de perturbar o sono de boa parte da população, a contínua exposição ao barulho nas horas de trabalho pode irritar certas pessoas até o ponto de lhes causar transtornos psíquicos. Nas férias, aqueles que podem viajam rumo a lugares tranqüilos, onde podem desfrutar de um silêncio repousante. Curiosamente, porém, mesmo nesses lugares, é comum que se dediquem a ouvir música, ver televisão, e mesmo a assistir espetáculos bastante ruidosos.

Para escapar dos ruídos indesejáveis, os jovens apelam para o fone de ouvido. Usando diversos tipos de tecnologias móveis, ficam ouvindo em toda parte e a qualquer hora as suas músicas prediletas em alto volume. Conseguem com isso não ouvir absolutamente nada do barulho da cidade, mas a carga sonora a que se submetem leva muitos deles à uma triste surdez precoce. O mesmo ocorre dentro dos carros, onde muita gente também ouve música em altíssimo volume.

Quer eliminar um barulho? Basta substituí-lo por outro. Os casos de amantes do silêncio absoluto, que se isolam em praias onde apenas há o suave ruído do mar, ou nos campos onde somente se ouvem os pássaros, são cada vez mais raros. Descontados os adeptos de certas seitas ou religiões de estilo oriental — para os quais esse silêncio meditativo é um rito obrigatório —, quase ninguém suporta o silêncio rigoroso. Pelo menos ter alguém com quem conversar parece ser imprescindível.

O mais evidente contra-exemplo de tudo isso é o sono. Ao dormirmos, faz-se silêncio em nossas mentes. Mesmo antes de adormecermos, há um pequeno espaço de tempo durante o qual todo barulho parece estar ausente. Finalmente paramos.

O que ocorre nessas vésperas do sono? A memória nos traz os acontecimentos do dia; a imaginação antecipa nos as alegrias e tristezas que nos esperam no dia seguinte, e a inteligência se agita tentando encontrar a solução para os problemas que mais nos afligem. A moleza leva-nos a um estado de menor ansiedade, e não é raro que nesses instantes a lucidez aumente, tornando-nos mais senhores de nós mesmos, e capazes de ver as coisas numa perspectiva mais objetiva. Um conhecido dito popular resume tudo isso: “O travesseiro é o melhor conselheiro”.

É no mínimo curioso que nos esqueçamos tão rapidamente dos benefícios do pré-sono, e nos disponhamos a imergir no barulho (bom ou mau) logo depois de acordarmos. Será que o filósofo Heidegger tinha razão ao dizer que no mais profundo de nós mesmos há um abismo? Penso que não: a fuga de si próprio é uma doença que tem cura.

Uma coisa é o que nós somos, e outra é o que desejaríamos ser. Conferir a distância que separa o real do desejado é algo que pode causar terror, e por isso é que fugimos. Desse terror sabem muito as gordinhas quando se olham no espelho. Após o susto, decidem comportar-se de modo a conseguir a mudança (regimes, remédios para emagrecer, ginástica, etc.).

O problema surge quando não há conduta possível para atingirmos certos ideais fantasiosos que às vezes forjamos: ser o maior do mundo nisso ou naquilo, ter vinte centímetros mais de altura, triunfar sobre tudo e sobre todos, não envelhecer nunca, mudar o passado para evitar a carga de algum erro que cometemos, etc. Nesses casos o terror é insuportável, e por isso o evitamos a todo custo, utilizando o barulho como antídoto desse silêncio que no fundo é o nosso espelho. Por isso o silêncio às vezes é sinônimo de tédio. Afinal, estar parados sem pensar em nós mesmos — com realismo e sem disfarces ou máscaras — é quase impossível.

O que aconteceria se mudássemos os nossos objetivos? Em vez de futilidades ou mentiras, que tal forjar um ideal mais nobre e de maior alcance, que nos torne homens ou mulheres verdadeiramente grandes e felizes? Há sempre uma conduta possível para chegar a esse tipo de ideais: basta um esforço esportivo e sereno todos os dias. O silêncio que mede e confirma nossos progressos (ou retrocessos, sempre remediáveis), passa a ser um amigo com quem freqüentemente desejamos nos encontrar.

O velho Sócrates dizia que começar é já ter andado quase todo o caminho. De fato, a figura do homem ou da mulher que sabe onde quer chegar — e o alvo não sendo uma mentira — é sumamente atraente. Num certo sentido, ele (ou ela), ao andar na direção certa, já chegou.