O belo e maravilhoso sentimento de culpa

“A primeira coisa que devemos fazer quando percebemos que caímos num buraco é parar de cavar.”

frase de um humorista norte-americano

A Medicina ensina que a dor é um sinal, um aviso de que algo não anda bem no nosso corpo. Se uma pessoa não sente dor alguma, mas apresenta disfunções motoras, alterações na cor da pele, falhas em algum dos sentidos, tonturas, ausência de reações a queimaduras, picadas ou arranhões, etc., tudo isso é sinal de que algo realmente grave está acontecendo.

O mesmo ocorre com o nosso interior, com a nossa alma, com a nossa “psique” (ou como se queira chamar).

Quando obtemos algum êxito ou fracasso, conseqüentemente sentimos uma alegria ou uma tristeza, maior ou menor conforme a importância do caso. As reações que diferem muito desse padrão costumam indicar falta de maturidade, um caráter ainda não suficientemente equilibrado, uma frieza temperamental não corrigida, ou até mesmo a perda — parcial ou total — da saúde mental.

O que é um êxito? Pode ser a realização de algum desejo, o prazer de sermos (finalmente) reconhecidos como homens ou mulheres de valor perante os outros, ou simplesmente a conclusão, correta e eficaz, de uma tarefa que empreendemos. A alegria que deriva disso faz cócegas na nossa imaginação, que se deleita em repetir mentalmente o que fizemos, uma e outra vez.

Um grande filósofo certa vez sentenciou: “todo êxito é prematuro”, indicando com isso que não convém nos embriagarmos muito contemplando os êxitos — sempre parciais — que vamos obtendo ao longo dos anos. Afinal, a vida continua, e nada terá valido a pena se não alcançarmos o êxito definitivo — conclusivo — que encerre com chave de ouro a nossa existência terrena. Aqui uma referência ao Céu é forçosa, pois sem ele nada vale a pena mesmo: terminaremos em pó, e nunca mais poderemos amar.

Já os fracassos merecem um exame mais atento, pois a tristeza que deles deriva é dor, e essa dor — especialmente se for prolongada, duradoura — pode ser sintoma de algo muito mais profundo.

Diz o ditado popular: “o homem é o único animal que tropeça duas vezes na mesma pedra”, diferenciando-se nisso dos cavalos, dos burros, dos elefantes, etc. Mesmo assim, à custa de um número maior ou menor de tropeços, ele finalmente acaba aprendendo que deve tomar cuidado com a maldita pedra. Nesse sentido, fracassar é aprender, e os sábios de todos os tempos sempre disseram que isso nos é de maior proveito do que uma série de êxitos embriagantes. Quando essa série é seguida de algum fracasso — sempre fracassamos em coisas de maior ou menor importância: essa é a condição humana —, podemos “cair do cavalo” e ficar bastante perplexos. Boa parte das depressões tem aqui a sua explicação.

Somos seres que querem o infinito, mas são limitados; querem o belo, mas encontram feiúra; querem amar, mas muitas vezes odeiam e são odiados; querem a glória, mas são com freqüência desprezados; querem sabedoria, mas se deparam com a idiotice (própria e alheia); querem o bem, mas sofrem os assédios do mal; querem viver para sempre, mas no entanto morrem. Às vezes, até conseguem um pouco do que querem, mas logo o prazer cede lugar à dor. Tudo isso tem um certo tom dramático e desesperado, que foi de tal forma enfatizado pela cultura e pelo pensamento ocidentais do início do século XIX — época conhecida como “Romantismo” —, que até hoje ainda nos afeta. Justamente por isso, a tarefa mais urgente do nosso tempo é a recuperação do otimismo.

Certos fracassos parecem que arrancam um pedaço de nós mesmos. São aquelas coisas muito ruins que fizemos (ou deixamos de fazer), e que tiveram conseqüências graves, ou até mesmo catastróficas. Injustiças, agressões, traições, perversidades, mentiras e maldades de diversos tipos (nisso, o homem é muito “criativo”). A marca que tudo isso deixa em nós é o famigerado “sentimento de culpa”, que nada mais é do que “dor de consciência” (conceito bem conhecido também).

Diante dessa situação — ou seja: a mutilação que a maldade feita representou para nós — só são possíveis duas opções: a primeira é pensar que agora somos diferentes, fazer de conta que nada disso aconteceu e desviar a atenção para outras coisas mais “positivas”. A outra opção é providenciar o remédio adequado para curar a ferida, aplicá-lo e seguir em frente, mesmo que tenhamos que recorrer a uma prótese ou muleta.

A primeira opção é sempre um desastre, pelo menos a longo prazo: a ferida não cicatriza bem, incuba germes que podem aflorar da forma mais inesperada após algum tempo, gruda‑se ao nosso modo de ser (consciente ou subconscientemente), incomoda permanentemente, expõe-nos ao vexame de sermos uns coxos que não admitem sê-lo, etc. É o mesmo que ocorre àqueles teimosos que se gabam de nunca irem ao médico, pensando que podem curar-se a si mesmos, ou pelo menos conviver com qualquer doença para sempre.

A segunda opção — própria de qualquer sujeito que tenha bom senso — requer que comecemos pedindo ajuda a quem possa contribuir para a nossa cura.

Em primeiro lugar, o que deve ser feito é uma avaliação dos estragos. Muitas vezes, quem vê a coisa de fora acaba nos fazendo descobrir que não fomos tão culpados como pensamos ter sido, e que tudo não passou de um abalo sentimental diante do inevitável, que nos pegou de surpresa. Outras vezes, mesmo que a maldade tenha sido grande, podemos consertá-la: basta voltar atrás, devolver o que roubamos, pedir desculpas ao ofendido, compensar o prejuízo que tenhamos feito com uma boa dose de serviços em prol de quem tenha sido prejudicado, etc. É claro que dizer que erramos implica num certo tipo de humilhação, que dói como um remédio amargo, mas que cura: reconstrói a nossa verdadeira auto-estima.

Quem admite seus erros tem uma grandeza que não depende do que os outros digam. É a grandeza de quem sabe recuperar a sua dignidade de ser humano que tenta ser bom. É a grandeza de quem conhece bem a condição humana, e age com realismo, livre de ilusões e de falsas quimeras. É a grandeza de quem não perdeu a esperança e acredita que vale a pena reerguer-se. Tal grandeza é freqüentemente recompensada com o maior dos prazeres que se pode ter na vida: o prazer se ser perdoado. Fazer as pazes com alguém (um amigo, a esposa ou o marido, e principalmente com Deus) produz em nós uma alegria quase indescritível.

Mesmo quando não conseguimos o perdão dos homens (isso acontece menos vezes do que se pensa), adquirimos uma sabedoria que nos permitirá (como no caso da pedra) não tropeçar novamente. Já é uma grande coisa: progredimos em direção à sabedoria do burro, do cavalo e do elefante.

No caso de Deus, esse fazer as pazes está de antemão garantido, pois ele é um pai bom que não quer que estejamos tristes. Basta perguntar-Lhe o que Ele quer que nós façamos de agora em diante, checar a resposta com alguém que esteja há mais tempo nesse mesmo caminho, e tudo está resolvido.

O sentimento de culpa, quando é tratado de frente, sem rodeios, é a melhor ocasião de se obter um grande crescimento pessoal. Uma libertação que quase nos permite voar. Um alívio. Uma delícia. Uma coisa bela e maravilhosa.