O que se vê e o que se nota

Como funciona o conhecimento humano? Essa pergunta vem intrigando os filósofos desde há mais de vinte e cinco séculos, e ainda não esgotamos o tema. Todos as propostas filosóficas têm um setor específico para tratar dessa matéria, e nele está o “miolo” do que cada uma tem a oferecer.

Um caso curioso é o de Kant: ele afirma que devemos ser fortemente “críticos” quanto às reais capacidades do conhecimento humano. Podemos conhecer pouco; e além disso, de forma distorcida por coisas que nós mesmos introduzimos naquilo que pretendemos conhecer. Interferem — ainda segundo Kant — as categorias “a priori”, que são como óculos vermelhos que tingem tudo dessa cor, de tal forma que ninguém jamais poderá saber qual é a verdadeira “cor” das coisas. A realidade é para ele um “noumeno” irremediavelmente ignoto. Essa afirmação é no fundo gratuita, e um insulto ao mundo que nos cerca; nos separa dele; torna-o de certo modo irrelevante e pobre (nem é preciso dizer que esse insulto atinge o seu Criador). Não vale a pena tentar conhecer o que quer que seja na sua mais profunda realidade, pois o bom “crítico” deve declarar impossível tal intento.

Podemos conceder que a realidade é como um oceano imenso e inabarcável por qualquer mente, por mais poderosa que seja. Mas isso não significa que não possamos molhar os nossos pés na água da praia, nem que essa água não seja de fato a mesma do oceano, embora não possamos bebê-lo inteiro. Isso exige uma certa dose de confiança — Kant afirmaria que é ingênua — sem a qual o mundo deixa de ter qualquer sentido. Quem desconfia de que a água é água está perigosamente próximo da loucura.

O conhecimento — dizem os clássicos, entre os quais o abominável (?) Aristóteles — começa pela abstração, que tem como fruto a capacidade de dar nomes aos objetos conhecidos, como por exemplo “mesa”, “árvore”, etc. Depois generalizamos, montamos conceitos, fazemos as ligações lógicas, descobrimos propriedades, e assim construímos a nossa “ciência” sobre tudo o que existe. No entanto, sempre temos a sensação de que algo está faltando...

Uma das chaves desse assunto é que o “objetivo”, enquanto conhecido, não é real: o fogo pensado não queima de verdade: só pode queimar — quando muito — um papel também pensado.

Kant não estava totalmente errado quando afirmava que não podemos atingir a realidade “de primeira”, isto é: apenas com uma simples constatação trivial e “objetiva”. Sempre notamos que isso é insuficiente. Repito: NOTAMOS que falta algo, e é justamente esse “notar” o que comumente não se examina nas diversas teorias sobre o conhecimento humano.

“Notar” significa, nesse contexto, um ato do conhecimento humano superior aos simples atos “objetivantes” — aqueles cujo resultado é um objeto pensado. Trata-se de um olhar que capta a realidade de modo muito mais profundo e certeiro. Ilumina as próprias carências dos atos “objetivos”, e isso nos possibilita novos atos objetivantes de nível mais alto.

O amor, a liberdade, a beleza, o próprio conhecimento, a vida, etc. são coisas que não se conhecem por “objetivação”; o que conhecemos assim são apenas os seus efeitos ou manifestações. São muitas as coisas que não é possível “objetivar”, mas apenas “notar”. O ato de “notar” é a grande chave para entender o conhecimento humano, pois está indissoluvelmente unido a todos os outros atos da inteligência, inclusive aos “objetivantes”.

Notar que algo falta (ou sobra) não é de modo algum um desrespeito à realidade, mas justamente o contrário: é uma homenagem ao seu tamanho e profundidade. Os filósofos da ciência poderiam economizar muito a sua verborréia sobre “mudanças de paradigmas” e “revoluções científicas” — ambas entendidas como grandes dramas —, se parassem de idolatrar o “objetivado”, como se fosse a última expressão possível da realidade.

Eles não repararam — não “notaram” ainda — naquilo que dizia Shakespeare: há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã filosofia.