Personalidade é igual a “curtição”

Respeitar a personalidade de cada pessoa, dentro de um lúcido pluralismo, é o que se espera de todos, tanto na sociedade civil inteira, quanto nos âmbitos menores (e não por isso menos importantes) como a família, a empresa, as associações de diversos tipos, etc.

Do ponto de vista pessoal e também no âmbito educativo, freqüentemente falamos de “desenvolver a personalidade”; comparamos personalidades “fortes” com as “fracas”; encontramos pessoas “sem personalidade”. Os sociólogos chegam mesmo a detectar uma “despersonalização” das massas, esmagadas pela tecnoestrutura e manipuladas pelos detentores do poder.

Todo esse palavrório, porém, é vago quando não se entende corretamente o que é a tal de “personalidade”.

A palavra, tem raiz na expressão greco-latina “persona” que significa “pessoa”. A pessoa é o “eu”, o “indivíduo”, o “quem” que cada um é. No nosso relacionamento com os outros, uma das coisas que chama imediatamente a nossa atenção são as preferências, os gostos, o “estilo”, que cada pessoa mostra no seu modo de ser. De onde provêm? Das suas próprias escolhas livres, embora condicionadas — até certo ponto — por fatores herdados, como a cultura em que nasce, a carga genética que traz no corpo, etc.

À medida que o tempo vai passando, cada um de nós vai escolhendo diversas coisas (profissão, passatempos, formas de vestir, de falar, etc.) conforme as suas preferências em cada caso, e os outros nos vêem assim. Somos, para eles, o tal fulano (ou fulana) que gosta (ou não) desse tipo de música, de trabalho, de distrações, de atividade, etc. Somos o que gostamos, e o que escolhemos ser.

Se nossas escolhas são de boa qualidade, os outros podem apreciar-nos como “gente boa”; se não são — como no caso de alguém que adora matar criancinhas —, os outros nos verão como seres execráveis. Há um certo tipo de “acompanhamento contínuo”, exercido por todos aqueles que nos rodeiam: uma espécie de espera para ver como a nossa vida vai se encaminhar.

Ao longo da vida, há mudanças nas nossas escolhas, e também na intensidade com que nos aferramos a elas. Certas coisas de que gostávamos quando éramos crianças, por exemplo, deram lugar a outros interesses — mais ou menos intensos — quando crescemos. A experiência nos vai mostrando, dia a dia, o que vale a pena e o que não vale, e nossas escolhas vão sendo cada dia mais conscientes, mais refletidas, mais de acordo conosco próprios.

Se pensarmos na intensidade com que alguém se prende a uma ou outra de suas preferências, sempre se vê um núcleo, um centro constante de interesses, que lhe dão um enorme prazer quando postos em prática. Dar voltas e voltas em torno desse centro é o que na gíria se chama “curtir”, isto é: regozijar-se em algo que se procura continuamente, compatibilizando-o com as outras atividades da vida.

Bem ou mal, todos desempenhamos um papel na vida, mas o que nos tira do anonimato de quem apenas “cumpre o seu papel” são as nossas “curtições”. São coisas muito nossas, que prezamos com verdadeiro carinho, e esperamos que os outros pelo menos as respeitem, quando não as puderem compartilhar. Todos nos orgulhamos do que “curtimos”. Quereríamos anunciá-lo a todo mundo, como a verdadeira expressão de nós mesmos.

Aos educadores (e aos amigos, que sempre acabam sendo nossos educadores também) cabe uma certa vigilância sobre as nossas “curtições”, pois é inevitável que elas sejam — mesmo que boas e acertadas — a fonte de todos os nossos exageros, caprichos e manias. Se nos descuidamos, podemos desequilibrar-nos, deixando que os nossos gostos arrebentem a nossa vida.

Como se vê, cada pessoa tem um recôndito núcleo, que lhe dá vigor e identidade, constituído por aquilo que “curte”. Se tiver um mínimo de qualidade — com em geral tem —, é justamente isso que deve ser prestigiado, fomentado, admirado e respeitado. Por ser uma forte expressão da pessoa inteira, penso que se pode considerar “curtição” como sinônimo de “personalidade”.