A identidade do defunto

Quando vamos a um funeral ou enterro — de um parente próximo, ou de alguém cujo falecimento não nos seja indiferente — é difícil saber como comportar-se.

Diante de todos, jaz o corpo do falecido. Muita gente procura aproximar-se, e alguns postam-se ao seu lado tão firmemente que não há quem os tire de lá, mesmo que seja evidente não terem mais forças para continuar. Pensam que retirar-se por uns momentos seria uma forma de abandono, uma afronta indesculpável.

Outros procuram evadir-se dessa aproximação, e limitam-se a conversar com os parentes mais próximos, manifestando‑lhes uma sincera solidariedade em sua dor, e procurando dar‑lhes alguma idéia reconfortante.

Além da dor, uma certa perplexidade impregna o ambiente, mesmo que as orações em prol do falecido se multipliquem.

O clímax acontece quando o corpo do ente querido é posto na sepultura, e desaparece das vistas para sempre. É comum que nesse momento a dor se manifeste de modo aparatoso ou até estridente. A operação parece ser uma agressão à pessoa falecida, tal como haviam sido os preparativos prévios ao velório (limpeza, vestuário, colocação num caixão, etc.). Afinal, a pessoa parece estar bem ali, diante dos olhos, e submetida ao mais cruel destino.

Mas isso não é verdade: para notá-lo, basta reparar na taxante distinção entre a pessoa e o seu corpo. Quando alguém morre — muitas vezes depois de uma longa e dolorosa enfermidade —, a biografia que escreveu com a própria vida está finalmente terminada. A alma separou-se do corpo (provisoriamente, pois voltará em edição revista e melhorada mais adiante), e a pessoa finalmente descansou.

Mais ainda: para os que foram “boa gente”, como se costuma dizer, o tal “descanso” é na verdade a hora de receber o prêmio de uma grande felicidade — tão grande que nem podemos imaginar como é —, acompanhada da satisfação de todas as suas aspirações e desejos.

A justiça de Deus é ao mesmo tempo misericórdia e respeito pelas decisões do interessado: apenas quando alguém obstinadamente preferiu ficar longe d’Ele nos instantes finais da vida é que — por Deus respeitar essa decisão, insisto — acontece o pior. No caso que estamos considerando, a pessoa pode ter tido erros na vida, mas o saldo é certamente positivo, e por isso podemos ter certeza que a biografia terminou com um “happy end”.

Uma vez que a pessoa está no Céu, feliz da vida e com um enorme sorriso nos lábios, olhando para baixo com carinho e benevolência, como não vamos nos alegrar, se o que queríamos para ele (ou ela) era precisamente isso?

E quanto a esse corpo que nós — os que ficamos — temos diante dos olhos no velório? Que atitude devemos ter para com ele?

Os restos mortais de alguém são como as relíquias dos santos: merecem veneração, respeito reverente, beijos, que se lhe espantem as moscas, que se o enfeitem com flores, e que seja sepultado piedosamente. Tais serviços não se prestam à pessoa (pois o seu problema, como acima foi dito, está resolvido da melhor maneira possível), mas aos restos que outrora lhe pertenceram. A partir de agora ficarão sepultados num lugar que — sob um certo ponto de vista — será apenas um simpático lugar de peregrinação.