Filosofia, meias, camisetas e roupa de baixo

Para muitos, já vão longe os tempos em que o próprio quarto (ou armário) era uma bagunça total: roupas espalhadas, cama desfeita e inúmeros objetos jogados em qualquer canto... E as eternas brigas sobre quem deveria pôr tudo em ordem, e quando. Hoje tudo isso passou, mas resta ainda muita coisa desarrumada (especialmente nos armários, prateleiras, gavetas... e nos chamados “quartos de despejo”, ou “quartos da bagunça”).

Outros — especialmente os mais jovens — ainda estão metidos em cheio nesse tipo de problemas. É freqüente que reclamem por não terem espaço suficiente para acomodar as suas coisas. Tudo o que vai chegando passa um breve tempo num lugar de destaque, e depois é jogado em cima do resto. Sua sensação de aperto aumenta cada vez mais, e acreditam que chegarão em breve ao caos total.

De repente aparece uma festa, ou outro compromisso qualquer, e é urgente achar uma peça de roupa específica (aquela camiseta, umas meias da cor certa, ou uma peça íntima mais confortável, etc.) e não conseguem encontrá-la no meio de tanta desordem. Urram de raiva e de aflição, proferem uma chuva de palavrões, e buscam um culpado pelo sumiço. Na maioria das vezes o que procuram está bem debaixo do seu nariz, mas na hora “H” não conseguem achá-lo.

Os mais espertos são os que respeitam o velho adágio agostiniano: “guarda a ordem e ela te guardará”. Mantém tudo o que têm perfeitamente colocado no seu devido lugar, como um maníaco colecionador de bugigangas, ou um daqueles antigos relojoeiros suíços.

Não se importam com o que os outros pensem a seu respeito: basta-lhes a satisfação de conhecerem detalhadamente o seu acervo de coisas. Isso permite-lhes que o aumentem à vontade, e na direção certa, pois sabem exatamente o que sobra e o que está faltando. Desfrutam além disso do imenso prazer de achar qualquer coisa em questão de segundos, para surpresa e admiração dos bagunceiros perplexos.

Nossas mentes são exatamente assim: há muitas coisas para colocar dentro delas, e de repente precisamos encontrar algo muito específico que nos ajude a sair de um apuro, pensando corretamente. Não é apenas uma questão de memória, mas de convicções, de certezas, de indicadores seguros que apontem para os reais perigos ou oportunidades. Às vezes essas idéias estão lá, mas a bagunça — por assim dizer — “entupiu” o cérebro, e não conseguimos achá-las a tempo.

A própria memória, para funcionar bem, precisa de uma certa “arrumação”: os elementos imaginativos e sensitivos (impressões, músicas e imagens que nos atingem com freqüência, mas que ainda não estão “digeridas”, etc.) devem estar regrados por algo maior, que os separe do que é vital e decisivo.

Antes de analisar as causas e os elementos de tal desordem mental, convém distinguir três tipos de conhecimentos: conhecimentos de fatos, conhecimentos práticos e conhecimentos criteriológicos. Os primeiros, são simples constatações: Paris é a capital da França, testam se protótipos de carros e aviões em túneis de vento, existem 16 espécies de pingüins, etc.. Tais conhecimentos podem ser muito numerosos, e isso é comum nos chamados “eruditos”. Os conhecimentos práticos, por sua vez, estão ligados a destrezas não somente mentais: andar de bicicleta, desenhar caricaturas, preparar bons bolos recheados, etc. Os últimos — os conhecimentos criteriológicos — são os conhecimentos sobre o valor dos próprios conhecimentos: seu alcance, sua importância para a vida, suas limitações, etc. Estes são os mais importantes, e compõem a verdadeira sabedoria.

Há mais de vinte e cinco séculos, o velho Anaxágoras de Clazômenas afirmou: “tudo tem a ver com tudo”. Isso significa que as idéias e as coisas estão todas ligadas, e que é fácil emaranhar-se nelas, chegando ao ponto de não saber ao que se ater em cada momento.

Esse emaranhamento, quando ocorre, é paralisante: não se sabe o que deve vir antes ou depois, o que tem importância e o que não a tem, o que é maior e o que é menor, o que é verdade e o que é mentira, o que deve esperar e o que não deve... Eis a causa do “entupimento” cerebral citado há pouco.

Tudo o que existe ou pode ser pensado deve caber num quadro geral de referências que devolva o controle da nossa mente a nós mesmos.

Os filósofos tentam fazer exatamente isso. Além disso, conseguem fazê-lo já de entrada: afinal, os parágrafos acima já são pura Filosofia, e por isso mesmo são esclarecedores.

O pensamento filosófico é visível nas crianças que perguntam tudo, nas avós que dão bons conselhos, na conduta das pessoas sensatas, e até mesmo no que dizem alguns dos que se autoproclamam filósofos. Trata-se de uma busca incansável pelo que há de mais geral e profundo em tudo, por aquilo que resiste à passagem do tempo, pela última verdade das coisas. Para isso é preciso coragem, e estar preparado para todo o tipo de abalos, mudanças e surpresas.

A Filosofia é absolutamente indispensável — na dose certa para cada pessoa —, pois consiste na arrumação das prateleiras da mente. Assim ordenada, a pessoa (a pessoa inteira, que é muito mais do que uma mente) poderá crescer cada vez mais, sem restrições, e adquirir os conhecimentos necessários em cada momento. O pensar mais profundo que a Filosofia oferece é ordenador e sereno: dá paz ao dia-a-dia da vida. Um mínimo de Filosofia torna as pessoas sábias, pois “sabem” selecionar o que realmente interessa em meio ao caos de idéias que pululam na sua própria mente e à sua volta.